por Almir Pereira
Na
página do jornal Folha de São Paulo (FSP) na internet há um campo
para pesquisas nos arquivos deste jornal. Para se pesquisar é
preciso optar pelos arquivos da edição impressa ou da edição
digital. Inserindo o termo “oligarquia” neste campo e optando
pela busca nos arquivos da edição digital, aparecem 315 resultados.
Para se ter um parâmetro de comparação: quando se insere, na mesma
busca, a palavra “política”, aparecem quase 558.000 resultados.
Quando é inserida a palavra “corrupção”, aparecem pouco mais
de 145.000 resultados . Inserida a palavra “democracia” temos cerca de 19.000 resultados. Para “ditadura” aparecem cerca de 10.500 itens e para
“partidos políticos” temos quase 9.000 resultados.
As 315
ocorrências da palavra “oligarquia” nos arquivos da FSP, versão
digital, referem-se a matérias de diversos tipos. Vão do noticiário
internacional aos textos de humor, passando pelo caderno de cultura e
todos os demais setores do jornal. No uso do termo destacam-se as
matérias sobre a política venezuelana, depois as sobre os demais
países da América Latina e em seguida a política regional no
Brasil, muito especialmente a política dos estados do Nordeste. Em
12/02/2014, dia em que foi feita a pesquisa, a ocorrência mais
recente da palavra “oligarquia” foi em uma matéria de
11/02/2014, e a ocorrência mais antiga foi em 07/08/2000. Cerca de
treze anos e meio foi o tempo transcorrido entre elas. Nas 315
ocorrências a palavra “oligarquia” é usada em sentidos e
contextos variados.
Nosso
objetivo não era saber só da incidência do termo nos arquivos
pesquisados. Aferida a incidência, passamos a analisar o sentido no
qual a palavra “oligarquia” foi usada em cada uma delas. Fizemos
isto em busca de matérias que usassem a palavra oligarquia para
designar “a prática da apropriação privada dos recursos públicos
(todo tipo de recursos, não só os financeiros) por agrupamento
político de abrangência nacional”.
Das 315
ocorrências do termo “oligarquia”, apenas dez (10) foram em
matérias que relacionaram este termo com a esfera política
brasileira em nível nacional. Destas dez (10), somente quatro (04)
matérias, trouxeram o termo com conotações que designam, direta ou
aproximadamente, a privatização da esfera pública pelos
governantes. Nas outras seis (06) ocorrências, daquelas dez (10), o
termo “oligarquia” foi usado com a conotação de “apropriação
permanente do poder político por um determinado grupo e a busca
deste por perpetuar seu domínio”, sem se referir, no entanto, ao
tipo de uso que tal grupo faz da coisa pública.
O domínio do
privatismo sobre a esfera pública brasileira como consequência de
uma tradição oligárquica é um tema com extensa elaboração na
sociologia e na ciência política nacionais, no entanto, nossa
pesquisa nos arquivos da FSP dá margem para deduzirmos que a
associação entre “oligarquia” e uso privado da esfera pública,
consagrada nas ciências sociais, praticamente é nulo na produção
jornalística atual, considerando que os arquivos dos últimos 14
anos do maior noticioso diário do país seja um medidor
representativo do jornalismo nacional no período. Apresentamos
abaixo, em ordem cronológica invertida, as quatro (04) ocorrências
encontradas nos arquivos pesquisados, que representam um resíduo
quase nulo de uso do termo “oligarquia” associado ao privatismo
político.
Em
23/06/2013, comentando as passeatas que ocorriam naqueles dias por
todo Brasil, um leitor, em carta ao jornal FSP, concorda com o
“ministro Gilberto Carvalho quando [este] diz que sem partidos não
há democracia”. E segue dizendo: “Só que ele [Carvalho] se
esqueceu de que no Brasil não há partidos, uma vez que todos se
venderam aos donos do poder para obter benesses e se esqueceram do
povo. Eles não representam a sociedade, mas a si mesmos. Hoje, sob o
nome de democracia, vivemos numa oligarquia que comanda a nação,
por isso o povo está na rua. (Jurandir Penha, Sorocaba SP)”.
O leitor
associa claramente o termo oligarquia a um domínio associado dos
partidos políticos e dos “donos do poder” sobre o povo, domínio
“que comanda a nação”, segundo ele. Tal domínio, aos olhos do
leitor, anulou qualquer lógica de representação popular pelos
partidos, o que o leva a concluir “que no Brasil não há
partidos”, já que partidos políticos só fazem jus efetivo à sua
designação quando competem entre si pela melhor representação do
povo. Representação cuja efetividade, aos olhos do leitor, é algo
contrário aos interesses daqueles que este chama de “donos do
poder”, e teria sido exatamente “para obter benesses [concedidas
pelos donos do poder, que os partidos] se esqueceram do povo”.
Como não há na carta uma argumentação sobre como isso ocorreu historicamente, não podemos estabelecer como o leitor chega a tais conclusões, mas a linha de raciocínio dele parece-nos clara e seu uso do termo “oligarquia” muito coerente com o significado que propusemos acima. A carta entende as relações de poder numa perspectiva mais ampla do que a nossa definição de oligarquia, pois estabelece um contexto social para o funcionamento da ação política. Quando ela estabelece a existência de “donos do poder”, por consequência está dividindo a sociedade entre estes a aqueles que não têm o poder. Como também diz que é dos “donos do poder” que os políticos obtêm “benesses”, podemos concluir que se trata dos “donos do poder” econômico.
A definição
de oligarquia em Aristóteles concorda com o uso que fez do termo o
leitor da carta supracitada, já que para este filósofo grego a
“oligarquia é um mau governo (…) porque governa obedecendo aos
interesses dos governantes e não do povo”(Bobbio. 1998: 837).
Assim como no raciocínio da carta, Aristóteles não opera com a
formalidade institucional do regime político, mas com a análise do
exercício factual do poder soberano pelos grupos e classes que
compõem a sociedade. Quando o poder soberano é exercido por e pela
maioria de homens livres e pobres, para ele há uma democracia. Já
quando a soberania é exercida por e pela minoria de ricos, é de uma
oligarquia que se trata (Aristóteles. sem data:115). Para
justificar as jornadas de junho de 2013, a carta citada acima diz que
“hoje, sob o nome de democracia, vivemos numa oligarquia”, ou
seja, nessa perspectiva as instituições da democracia brasileira
atual tornaram-se um simulacro de democracia, que serve para
dissimular o funcionamento real da política nacional em termos
opostos a um funcionamento democrático efetivo, quais sejam: os
termos de um funcionamento oligárquico.
Hélio
Schwartsman, bacharel em filosofia, articulista da FSP, publicou
nesta, em 04/11/2010, um artigo de avaliação dos resultados de 08
anos do Governo Lula. A certa altura do texto ele diz que entre
“2003, e a eclosão do escândalo do mensalão, em 2005, o PT
passou de partido principista, que não admitiu nem mesmo participar
do “espúrio” Colégio Eleitoral que elegeu Tancredo Neves e pôs
fim a ciclo autoritário, a legenda pragmática radical, que se alia
sem hesitar aos Sarneys, Collors e Renans deste país.” Para
afirmar na sequência que “qualquer transformação minimamente
progressista do Brasil passaria por contrariar ativamente os
interesses dessa oligarquia (“Sarneys, Collors e Renans deste
país”). Não fazê-lo é, na minha leitura, o atestado de óbito
ideológico do PT.” A causa desse suicídio ideológico estaria,
segundo o articulista, no fato de que “quando chegou ao Planalto e
teve a oportunidade de pelo menos tentar modernizar o Brasil, o PT
preferiu o caminho mais confortável de compor com os inimigos de
ontem para com eles partilhar as prebendas de hoje – e de amanhã.”
Consequentemente, segundo Schwartsman, “o governo Lula representou
uma mera troca de guarda entre os inquilinos do poder”,
decepcionando “quem apostava no PT da ética e dos princípios
republicanos”.
O artigo de
Schwartsman, concorda com nossa caracterização do termo
“oligarquia” como sendo a privatização do poder público por
quem o exerce. Ele associa a palavra a agrupamentos de personagens
políticos (“Sarneys, Collors e Renans deste país”) que mantêm
sob seu controle importantes posições no poder político nacional
há muito tempo, com o objetivo de gozar das “prebendas de hoje –
e de amanhã”, que são garantidas por esse controle. Além disso,
a lógica da oligarquia também está presente na caracterização da
trajetória do PT pelo autor, que pode ser alinhada com as
transformações dos partidos socialistas europeus observadas por
Robert Michels (Souza. 1966) no sentido da oligarquização desses
partidos.
Para
Schwartsman a trajetória do PT é uma passagem de “partido
principista”, ou seja, que atua principalmente pela defesa de
ideais (princípios), para uma posição que ele chama de “pragmática
radical”, que interpretamos como: desejo de estar no poder a
qualquer preço. Para Schwartsman a causa desta mudança de
orientação se deu com o objetivo de uso da esfera pública para o
gozo privado dos membros do partido, pois, para o PT agora, governar
é “compor com os inimigos de ontem para com eles partilhar as
prebendas de hoje – e de amanhã.” O paralelismo com as
constatações de Michels em relação aos partidos socialistas
europeus, mencionadas acima, salta aos olhos. Criado para ser um meio
de construção do socialismo, o Partido Socialista Italiano, por
exemplo, segundo Michels, se transformou “em um fim em si mesmo,
visando interesses e vantagens próprios”(Souza:101), e isso o leva
a “um desligamento da classe que representa”(Souza:101). No caso
do PT, segundo Schwartsman, a adoção do comportamento oligárquico
levou este partido a desligar-se “da ética e dos princípios
republicanos” e, por isso, a assinar seu “atestado de óbito
ideológico”.
Mesmo quando
aponta o período em que o PT era um partido que defendia princípios,
Schwartsman mostra insatisfação com o radicalismo com que o PT
atuava. Daí o PT ser chamado por ele de “principista” e não
simplesmente de partido de princípios. “Principista” remete a
alguém apegado a princípios mais do que o normal. Talvez quase um
fundamentalista. Esse “principismo” petista é ironizado por
Schwartsman em relação à negativa do PT de participar do Colégio
Eleitoral que elegeu Tancredo Neves. Para o articulista da FSP a
eleição indireta de “Tancredo Neves pôs fim ao ciclo
autoritário”, da ditadura civil militar de 1964. Não participar,
pragmaticamente, de evento tão relevante para a democracia por apego
a princípios, alegando que o Colégio Eleitoral era um acordo
espúrio, como fez o PT em 1984, do ponto de vista de Schwartsman,
revela o quanto o PT agia por “principismo” e não por
princípios, já que o Colégio Eleitoral teria sido a forma
concreta de assegurar os princípios democráticos, segundo o que se
pode deduzir das palavras do articulista.
É preciso
uma digressão sobre isso. A ironia de Schwartsman não tem base na
realidade, pois desconsidera que o Colégio Eleitoral foi um freio ao
processo de democratização e um golpe da oligarquia brasileira, da
qual Tancredo era parte, para esta arrebatar uma maior fatia do poder
federal do que aquela que já tinha sob os militares. E foi o que
aconteceu no Governo Sarney, que caracterizou-se por uma postura
autocrática, pela articulação do Centrão na Constituinte e pelo
aumento do mandato presidencial para 05 anos em função do gozo do
poder pelo Presidente e pela oligarquia. Isto postergou em mais um
ano a data para a eleição direta do Presidente da República. A
eleição de Tancredo Neves somente pôs fim ao ciclo dos presidentes
militares. O “fim do ciclo autoritário”, ao nível da
Presidência da República, só aconteceu com a posse de Itamar
Franco, em 1992. Esse período da história brasileira foi amplamente
estudado e documentado em livro (Silveira. 2013) que desmistifica a
visão oficialista, defendida por Schwartsman no artigo supracitado.
Em relação ao Colégio Eleitoral é Schwartsman quem defende a
posição oligárquica, enquanto que o PT da época sustentou uma
posição democrática heroica. Heroica porque até hoje é
injustamente condenado por isso, como mostra o artigo que estamos
discutindo.
Passemos
agora à afirmação de Schwartsman de que o PT “quando chegou ao
Planalto (...) teve a oportunidade de pelo menos tentar modernizar o
Brasil”. O que não seria simples dado que, para o articulista,
“qualquer transformação minimamente progressista do Brasil
passaria por contrariar ativamente os interesses [da] oligarquia”,
ou seja, a oligarquia brasileira seria o fator político que impede a
construção da modernidade no país. Concordando com isso emendamos:
fator que trava principalmente a implantação da modernidade
política ao nível do Estado brasileiro. Enquanto era “principista”,
a ação política do PT ajudou a explicitar isso, inclusive
denunciando o Colégio Eleitoral como traição oligárquica à
campanha das “diretas já”, esta sim, representante
inquestionável da modernidade política.
Uma das
quatro (04) ocorrências de nossa pesquisa nos arquivos da FSP, que
nos propomos a analisar aqui, é uma reportagem publicada em
13/12/2006, com argumentos do então governador de São Paulo,
Cláudio Lembo, avaliando o abandono do discurso de esquerda e a
adoção de um tom centrista por Lula durante a campanha eleitoral em
que este buscava sua reeleição à presidência da República. Para
Lembo “a mudança de tom do presidente se deu por sua percepção
de que o PT perdeu sua identidade, se tornando o mais conservador dos
partidos e uma grande oligarquia nacional”. Lembo, à época, dizia
que “a proposta de Lula de formar um governo de coalizão não
daria certo por reunir membros muito heterogêneos, entre eles as
oligarquias brasileiras, que são sempre muito vorazes na busca por
cargos públicos”.
Ao dizer “que
o PT perdeu sua identidade, tornando-se o mais conservador dos
partidos e uma grande oligarquia nacional”, Lembo diz que a
identidade que o PT perdeu não era nem conservadora e nem
oligárquica. O que está em harmonia com a identidade atribuída ao
PT pelo artigo de Schwartsman, como sendo este um partido que
representava a esperança em um governo de “princípios
republicanos”. Tendo abandonado sua identidade, o PT, segundo
Lembo, aderiu as coisas que combatia: o conservadorismo e a
oligarquia.
Hoje, mais de
sete (07) anos depois das declarações de Lembo, sabemos que elas
erraram em sua previsão de provável fracasso, que Lula teria em seu
segundo mandato ao manter numa coalizão “membros muito
heterogêneos, entre eles as oligarquias brasileiras”. Como não há
no texto uma especificação desta heterogeneidade não dá para
supô-la aqui, mas como Lembo designa o PT como “uma grande
oligarquia nacional” e depois fala de uma coalizão heterogênea
deste, e outros, com as “oligarquias brasileiras”, parece que a
heterogeneidade é entre as oligarquias tradicionais (estaduais e
familiares etc) e a “grande oligarquia nacional”, em que se teria
convertido o PT, segundo Lembo. Heterogeneidade contraditória com o
próprio diagnóstico das declarações, já que, para Lembo, o PT e
“as oligarquias brasileiras”, são oligarquias, de onde viria a
heterogeneidade entre coisas de mesma natureza? Se, apesar de terem a
mesma natureza, mesmo assim, seja possível falar em heterogeneidade,
como caracterizar esta? São questões que as declarações de Lembo
deixam no ar.
A
caracterização, por Cláudio Lembo, das “oligarquias brasileiras”
como sendo “sempre muito vorazes na busca por cargos públicos”,
aproxima-se da ideia de oligarquia que é nosso foco aqui, pois, é
claro, tal voracidade não se explica em função de espírito
público, mas de poder auferir vantagens privadas pelo controle de
tais cargos. Entretanto, há uma ressalva que deve ser feita aqui, a
voracidade por cargos públicos não é específica das oligarquias.
Max Weber, depois de estudar a natureza dos partidos políticos em
Estados modernos, chegou à conclusão de que “todas as lutas entre
partidos não são apenas por fins objetivos, mas também, e
sobretudo, lutas pela patronagem dos cargos” (Weber. 2012: 546).
Não são apenas as oligarquias que são vorazes por cargos públicos,
é a própria lógica de domínio político moderno através de
partidos, quem engendra tal voracidade.
A última das
quatro ocorrências do termo oligarquia, que será analisada agora, é
uma reportagem publicada em 21/05/2010, na qual são apresentadas
declarações de José Serra, então pré-candidato à presidência
da República pelo PSDB. No trecho que nos interessa aqui, e que foi
o motivo da matéria, Serra afirma que “o Brasil vive o momento
mais patrimonialista da história. Nem na República Velha, que era
uma oligarquia, foi assim”. Um dia depois o jornal O Estado de S.
Paulo repercutiu as mesmas declarações, porém, nesta versão,
Serra teria dito que “nem na República Velha, que era um regime
oligárquico, tinha um patrimonialismo selvagem como o de hoje”.
Esta versão apresentou o significado dado por Serra ao termo
patrimonialismo, como sendo a prática de “usar o governo como
propriedade privada”.
As
declarações de José Serra são em torno do tema patrimonialismo.
No entanto, a conotação que Serra
dá a este termo é a mesma que
usamos para caracterizar a prática política oligárquica, qual
seja, a prática de “usar o governo como propriedade privada”.
Para salientar sua acusação, de que o Governo Lula usaria a coisa
pública como um patrimônio particular, Serra diz que em tal governo
este uso seria “selvagem”, ou seja, livre de restrições morais.
Serra não acusa o Governo Lula de ser uma oligarquia, mas diz que a
suposta prática privatista deste é pior que a de um período
reconhecidamente oligárquico: o da República Velha. O uso privado
da esfera pública é algo permanente na república brasileira, do
início desta até os dias atuais, como as declarações de Serra
propõem?
A permanente
apropriação privada da esfera pública é o que caracteriza a
prevalência do “discurso oligárquico” (Silveira. 2014: 12, 13 e
14) na política brasileira, que se impôs já antes da proclamação
da República. Originário do colonialismo senhorial e atomístico,
ele sofreu algumas mutações desde então, mas estas só alargaram
sua abrangência e poder, não afetando sua essência: atrofia de
funcionamento público da esfera pública. Uma série de estudos
sociopolíticos do Brasil estabeleceram os significantes que fazem
parte da lógica política oligárquica.
O sociólogo
José de Souza Martins identificou na política do favor o alicerce
do Estado brasileiro e um impedimento para a separação do público
e do privado. No Brasil, para Martins, nas relações dos indivíduos
com o Estado, estes são induzidos a trocarem favores com a
oligarquia para efetivarem suas demandas (Martins. 1999: 29). A
política do favor da tradição oligárquica perverte a
representação política, pois nesta tradição “o mandato é
sempre um mandato em favor de quem está no poder, pois é daí que
vêm as retribuições materiais e políticas que sustentam o clientelismo”(Martins: 33).
Também no
processo de modernização econômica do Brasil as transações com o
Estado, em termos de troca de favores, foram determinantes, tendo
sido tais transações a gênese da “moderna burguesia
brasileira”(Martins: 30 e 31). Ao contrário do que pregam certas
crenças, o clientelismo político, ou seja, a troca de favores
políticos por benefícios econômicos, se instalou no Brasil como
uma relação entre poderosos e ricos, pois os pobres só adquiriram
importância política, com o voto. O que se deu tardiamente em
relação à formação do Estado. Mesmo quando a oligarquia se viu
alijadas do comando do poder nacional e de alguns estados, quem
passou a comandar não governou sem uma aliança com ela, já que ela
continuava a controlar as redes clientelistas ao nível dos
municípios. Foi o que aconteceu depois da Revolução de 30, no
governo Vargas e depois do golpe de 64 nos governos militares.
Martins vê
no favor algo que não é só restrito à esfera da política
brasileira. Ele postula a existência de uma extensa “cultura do
favor” que, inclusive, passa por um processo de modernização. Um
dos exemplos disso seria um programa televisivo de auditório que fez sucesso por
décadas através da concessão de prêmios aos espectadores. Ao contrário de Martins, não associamos a lógica desses programas de TV à “cultura do favor”, pois trata-se de uma oferta unilateral que não estabelece um vínculo de reciprocidade. Nos últimos anos esta
lógica se tornou mais sofisticada e está presente em vários
programas da TV aberta. Um destes programas, talvez o de maior audiência, se
dedica à recuperação de automóveis em avançado estado de
decomposição e à reforma de habitações precárias de pessoas
pobres. O apresentador deste programa, para quem a presença na mídia
gera uma renda anual de milhões de reais, cogitou candidatar-se à
Presidência da República para, segundo ele, “poder ajudar”
(revista Alfa: abril/ 2011). Parece que seria correto classificarmos
esta parte da programação televisiva como sendo “entretenimento
oligárquico”.
Foi durante a
última década que os programas de auditório da TV aberta
aperfeiçoaram seus mecanismos voltados
para a população pobre. Paralelamente, em nível federal, no mesmo
período, era produzida uma série de políticas para a população
de baixa renda, das quais a mais importante é o programa Bolsa
Família. Através da distribuição direta de dinheiro público à
população pobre produziu-se um dispositivo para além da política do favor, entre o Presidente da República e dezenas de milhões de
brasileiros, principalmente do Nordeste. Alguns meses antes da
eleição de 2006 o Bolsa Família beneficiava 11,4 milhões de
famílias, ou seja, mais de 50 milhões de pessoas (Singer. 2012:
64). Com o Bolsa Família a cultura política oligárquica passa a
funcionar por outros meios. No Nordeste as massas pobres substituem,
parcialmente, a política do favor das oligarquias regionais pela
relação monetária com o Estado, vista pelas massas como benesse do
senhor lulista (Silveira. 2014: 90-91). “O uso político privado do
pobre [, não só o do Nordeste,] é o desejo do senhor do lulismo”
(Silveira. 2014: 94), ou seja, uma forma de uso privado da esfera
pública.
A transação
entre Lula e as massas pobres é uma relação reconhecível como uma
formação do inconsciente político das massas. No inconsciente
político destas, especialmente as do Nordeste, Lula é o equivalente
do senhor colonial “benevolente”, que provia os escravos de
alimentação farta, forte e saborosa, apresentado por de Gilberto
Freyre (Silveira. 2014: 32-33). É a demanda das massas por um pai
protetor que Lula atende, e consegue em troca a “servidão
voluntária” delas. É um tipo de troca que se opera no âmbito
caloroso dos afetos e não no âmbito frio da relação comercial. A
benevolência do senhor escravocrata não garantia a este a
docilidade de todos os escravos, afinal existiam os quilombolas.
Também não foram todos os eleitores beneficiários do Bolsa Família
que reelegeram Lula. No entanto, uma grande maioria destes
beneficiários, especialmente no Nordeste, demonstrou com o voto a
sua gratidão ao senhor lulista. É preciso lembrar que na história
do Brasil o agenciamento da servidão voluntária das massas não é
exclusividade do lulismo. Getúlio Vargas também aplicou este saber
sobre as massas populares. Em ambos os casos a Presidência da
República tornou-se um lugar de retorno do discurso do senhor
colonial brasileiro, agente basal do discurso oligárquico, sob a
forma do magister latino (Silveira. 2014).
O discurso do
senhor colonial consistia do uso privado exclusivo do excedente
econômico e se estendeu ao uso privado dos recursos públicos, na
colônia e para além dela. Gilberto Freyre sintetiza tal lógica
como sendo a de um “privatismo excessivo” (Freyre. 1996: XXXV).
Nos núcleos urbanos que experimentaram algum crescimento ao longo do
Século XIX, esse privatismo excessivo é fácil de ser percebido,
“porque os jardins, os passeios chamados públicos, as praças
cercadas de grades de ferro, se limitaram ao uso e gozo da gente de
botina, de cartola, de gravata, de chapéu de sol – insígnias de
classe” (Freyre: XLII), diríamos: da classe senhorial. Esse
excesso também se manifestava como desprezo pela própria via
pública que deveria servir a todos como local de passagem. Freyre dá
vários exemplo de como a rua era tratada como terra de ninguém
pelos habitantes do sobrado senhorial. Já em 1961, Freyre mantinha,
sem alteração, no seu prefácio de Sobrados e mucambos, a
pontificação que havia escrito décadas atrás: “O privatismo patriarcal ou
semipatriarcal ainda nos domina” (Freyre. XLVII).
Tal ordem
social produz um discurso político que é uma extensão da lógica
doméstica sobre a esfera pública. Para Weber um Estado tem
estrutura patrimonial quando a lógica que organiza o poder doméstico
de um príncipe é a mesma que este usa para organizar seu poder
político. “No patrimonialismo o poder doméstico está associado à
família real. No Brasil ele está associado à casa-grande”
(Silveira. 2001: 25). Gilberto Freyre cunhou o termo familismo para
designar a forma brasileira do patrimonialismo. A família foi a
unidade de imposição e expansão do poder colonial português pelo
território que hoje constitui o Brasil. Ela foi a base de expansão
do Estado lusitano, este seguiu tal expansão apenas sancionando-a e não
determinando-a ou condicionando-a (Freyre: XXXIII).
Mas não foi a
família nuclear moderna tal qual a de hoje, foi a família extensa
instalada em latifúndios de caráter social feudal (embora não de
caráter econômico feudal) e dominada pelo poder absoluto do
patriarca, que impunha sua vontade à mulher, aos filhos, aos seus
empregados livres e aos escravos. É esse poder
doméstico, familiar e “da família”, que os senhores coloniais
expandiram sobre as instituições públicas. Desde o início o
movimento de urbanização da sociedade brasileira teve como seu
principal problema a contenção do privatismo das casas,
especialmente dos sobrados patriarcais, sobre os logradouros e o
desprezo destas casas por regras de urbanidade necessárias à
existência da rua como efetivo espaço público (Freyre. 1996). Atualmente quem
acompanha o noticiário sabe que este problema perdura até hoje, na maioria das
cidades brasileiras.
A
interpretação e a prática do republicanismo pelo poder familiar
patriarcal também demonstraram a particularidade torpe através da qual tal poder simula as ideologias políticas modernas. Na ótica senhorial a república
deveria servir para “assegurar ao país a ordem necessária ao
desenvolvimento material das cidades e à mecanização de indústrias
e lavouras” (Freyre: LXX). Daí a preferência pelo lema
positivista, que a República escreveu em nossa bandeira nacional, alheio ao ideais da Revolução Francesa
(“liberdade, igualdade e fraternidade”). Freyre chega a citar o
exemplo de líderes republicanos brasileiro de origem plebeia e
mestiça que, alçados ao poder, se distinguiram como chefes de
polícia que na busca pela manutenção da ordem usavam
excessivamente de violência contra a população pobre e negra.
Sintoma claro de uma república oligárquica de famílias patriarcais
latifundiárias, que continuava a aterrorizar seus ex-escravos e os
fazia sentir saudades da princesa Isabel, maternalmente idealizada
por estes como um consolo à brutalidade da oligarquia republicana.
Gilberto
Freyre faz a arquitetura derivar do inconsciente político
oligárquico. O privatismo deste mais uma vez fica explícito quando
este sociólogo aponta o quanto as suntuosas residências
urbanas das famílias senhoriais, do período do Império, “chegaram
a ultrapassar a arquitetura oficial”(Freyre: LXXII). A arquitetura,
através da obra de Freyre, torna-se também uma lógica de
significantes políticos familistas marcados na paisagem rural e
urbana. Segundo ele, foi nas casas dos ex-barões que a República
encontrou os melhores imóveis para fazer e expandir suas instalações
burocráticas e não nos imóveis públicos herdados da monarquia
(“arquitetura oficial”). Essas casas são um índice do
“privatismo da organização patriarcal, a um tempo personalista e
solidarista, dada a absorção do indivíduo pela família e [são
índice também da] subordinação do Estado à pessoa nobre” (ao
senhor patriarcal) (Freyre: LXXII).
Nos quatro
primeiros séculos da história brasileira a família tutelar foi a
maior força permanente, em torno da qual giraram os principais
acontecimentos. O Estado, tanto quanto a religião, estiveram, nesse
período, sob o domínio da pessoa ou da família economicamente
poderosa, sendo tal personalismo também proveniente da formação
patriarcal do brasileiro (Freyre: XC). Freyre pensa que o componente
patriarcal do familismo tende a ter uma vida longa ou até eterna na
vida política do brasileiro. “O patriarcal tende a prolongar-se no
paternal, no paternalista, no culto sentimental ou místico do pai
ainda identificado entre nós, com as imagens de homem protetor, de
homem providencial, de homem necessário ao governo geral da
sociedade” (Freyre: XCI). Não seria esta a imagem que grande parte
dos políticos tenta sustentar no Brasil? Não foi se associando a
esta imagem que governaram Getúlio Vargas e Lula, que se elegeu
Collor de Mello ou com a qual a mídia “santificou” Tancredo
Neves?
A posição
patriarcal no familismo é da ordem de um lugar num discurso. Neste
os lugares têm suas funções determinadas na relação com os
demais lugares. O lugar patriarcal no discurso familial é o lugar do
agente (S1) que se dirige a um outro (S2), lugar este que no discurso familial
é representado pela mulher, filhos, “agregados”, empregados
livres e escravos, pois são estes que detêm o saber que gera o gozo
familial no domínio doméstico. Freyre chama o lugar do agente (S1)
de “sistema patriarcal: [que é] o de dominação da família, da
economia e da cultura pelo homem, às vezes sádico no exercício do
poder e do mando, embora o poder e o domínio ele o exerça menos
como indivíduo ou como sexo chamado “forte” ou “nobre” do
que como representante do poderio familial” (Freyre: CII).
Portanto, trata-se de um lugar no discurso, cuja função é
determinada estruturalmente e independe das qualidades individuais de quem o ocupa.
“Daí o fato de ter sido esse poder exercido às vezes por mulher:
mulher cuja função era de patriarca e cuja forma de domínio era a
patriarcal” (Freyre: CIII).
Quando o
discurso familial é estendido à esfera pública, o lugar do outro
(S2) passa a ser ocupado por novos representantes de saber que geram
o gozo familial, quais sejam: o transeunte, o cidadão, o eleitor, o
contribuinte, o baixo funcionário público a quem é imposta a
“carteirada” etc. Todos estes detém um saber capaz de gerar gozo
familial, que neste âmbito pode ser melhor caracterizado como gozo
oligárquico, já que com a assunção do poder familial sobre o
poder nacional o caráter familial do discurso e transmuta-se em
caráter oligárquico. Embora, curiosamente, no senso comum
jornalístico brasileiro o emprego da palavra oligarquia é
majoritariamente associado somente ao domínio familial na política.
Recentemente
uma trágica sequência de assassinatos, devidos às condições
medievais do principal presídio do Maranhão, trouxe à público a
extensão do gozo familial extraído pelo clã Sarney de seu domínio
sobre a política maranhense. Na mesma época dos assassinatos estava
previsto, como é praxe, através do erário estadual, o
abastecimento das residências oficiais da governadora (palácio e
casa de veraneio), por grandes quantidades de alimentos luxuosos:
camarão, lagosta fresca, patinhas de caranguejo, foie gras, geleias
francesas, castanhas, caviar e uísque escocês, somando um custo de
1,1 milhão de reais (O Estado de S. Paulo: 09/01/2014).
Tais benesses
não contrastam apenas com a situação miserável dos presídios
estaduais. “O custo total de R$ 1,1 milhão corresponde a 3.113
vezes a renda per capita média de quem mora no Maranhão, estado
brasileiro com a pior média. Segundo o Atlas do Desenvolvimento
Humano de 2013, do Pnud, os maranhenses têm renda individual média
de R$ 360,34 - a média nacional é de R$793,87” (O Estado de S.
Paulo: 09/01/2014).
Neste caso, é
no lugar do agente do discurso familial dos Sarney, posição
patriarcal freyreana, que está a governadora Roseana e no lugar
daquele que detém o saber que produz o gozo familial, o lugar do
outro (S2), estão os presidiários e demais cidadãos maranhenses,
doadores de um “gozo a mais” para a família Sarney.
Nas
entrevistas que concedeu para explicar a situação dos presídios e
a compra das mercadorias citadas, alguns jornalistas trouxeram à
baila o tema da oligarquia, inquerindo se o domínio familial dos
Sarney na política maranhense podia ser classificado como tal.
Segundo relatos jornalísticos, a questão irritou a governadora
Roseana Sarney, que afirmou que “não existe oligarquia.” “Isso
é ignorância ou má-fé.” “No Maranhão, assim como no Brasil,
há democracia. Os governadores são eleitos.” “Não gosto de
comentários maldosos”(http://noticias.uol.com.br:
12/01/2014). As supostas “ignorância ou má-fé” dos jornalistas
não vêm do fato de associarem o domínio dos Sarney ao significante
oligarquia, vêm de não fazerem o mesmo com vários outros grupos
oligárquicos não familiares que dominam a política brasileira.
Enquanto as oligarquias familiares tentam se esconder através do
sistema eleitoral, as outras oligarquias ficam ocultas pelo senso
comum jornalístico brasileiro, que vê oligarquia apenas no domínio
político familiar.
Bibliografia
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Folha de São Paulo (acervo digital): http://www.folha.uol.com.br
O
Estado de São Paulo (acervo digital): http://www.estadao.com.br
Revista
Alfa. São Paulo: Editora Abril, edição abril/ 2011.
Outros
Portal de notícias UOL. São Paulo: Grupo Folha: http://noticias.uol.com.br
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