sábado, 29 de março de 2014

Sade e a revolução

por Almir Pereira

*Este texto foi apresentado ao XXXVI Encontro da Escola Brasileira de Psicanálise Movimento Freudiano (EBPMF), em 15/03/2014, sob o título: Sade, a psicanálise e a política, título este que figurou aqui nos primeiros dias de publicação.

Uma das lembranças mais primárias dos estudantes acerca da história universal é a linha do tempo que apresenta pontos de ruptura separando os longos períodos históricos. A Revolução Francesa é, em tal linha, o ponto de ruptura que separa a Idade Moderna da Idade Contemporânea. As historiografias atuais têm verdadeiro horror a tal mecanicismo, mas este ainda povoa a memória daqueles que foram escolarizados quando a história mecânica ainda era a regra. Algo da Revolução Francesa ainda nos é contemporâneo: o republicanismo, ideologia que afirma a liberdade e igualdade entre os homens.

Em seu livro A filosofia no “boudoir”, Sade incluiu o panfleto intitulado “Franceses, mais um esforço se quereis ser republicanos...”. Nele o marquês dá sua versão do autêntico republicanismo, a concretização do mesmo deveria motivar os franceses a ir além do republicanismo terrorista que foi o ápice da Revolução e período no qual Robespierre foi o senhor da França. O panfleto é dividido em duas partes: A Religião e Os Costumes. Na primeira parte Sade afirma a necessidade do estabelecimento oficial do ateísmo para assegurar a autenticidade republicana. Na segunda parte são apresentadas as propostas de reforma dos costumes para torná-los adequados a uma república, já que Sade considera os costumes vigentes durante a Revolução como sendo frutos e garantia de continuidade do despotismo. Tanto o teísmo dos revolucionários, que queriam instituir uma religião civil, quanto a moralidade, ainda em vigor, deveriam, para Sade, ser substituídos pelas novas regras que ele propõe ao longo do texto.

Pierre Klossowski dedicou um capítulo de seu estudo sobre Sade à relação deste com a Revolução. Salta aos olhos a leitura sociológica que estrutura tal estudo. Sade como um produto da decadência da velha ordem social que quer impor tal decadência como a forma autêntica de estabelecer a nova ordem. Klossowski faz assim a defesa da ordem republicana, nascida da Revolução Francesa, contra a necessidade libertina sadeana de radicalizá-la.

Por conta dessa confrontação entre Sade e a Revolução, fui ao dicionário de política buscar alguma luz. Me surpreendi com o fato de que, em sua origem renascentista, a palavra revolução se referia “ao lento, regular e cíclico movimento das estrelas” (Bobbio: 1123), o que parece se opor ao sentido que lhe atribui o senso comum atual, o de mudança radical daquilo que é normal e regular. Essa palavra adquiriu caráter político, segundo o mesmo dicionário, no século XVII, mas mantendo uma correlação com o sentido acima, o de “retorno a um estado antecedente de coisas, a uma ordem preestabelecida que foi perturbada” (Bobbio: 1123), sentido que ainda era válido no período inicial da Revolução Francesa.

Foi durante a última década do século XVIII que a palavra revolução passou a significar a “fé na possibilidade da criação de uma ordem nova” (Bobbio: 1123), e isso não foi à toa, já que os iluministas, principal influência intelectual dos acontecimentos políticos daquela década na França, já operavam com este sentido implícito em suas formulações teóricas, postulando “a criação de novos instrumentos de liberdade” (Bobbio: 1123). Além de assegurar a liberdade, para os iluministas a revolução também deveria trazer a felicidade ao povo.

Ser livre, para Sade, é fazer o que a lei proíbe, ou seja, poder cometer crimes. Aliás, crime, para Sade, é coisa de uma ordem despótica, numa república autêntica a lei deve ser permissiva o suficiente para tolerar coisas como o assassinato, o incesto, a pedofilia, o estupro, a calúnia, o roubo etc. Só dá para falar que ainda há lei na imaginação sadeana porque nela há a proposição de várias obrigações: comunidade de homens e de mulheres, comunidade de crianças, fim da família, comunidade da riqueza, proibição da pena de morte etc.

O recalcamento originário constitui o inconsciente enquanto um processo metafórico. Nele o significante do desejo da mãe, ou seja, do Outro, é recalcado em função de um novo significante: o Nome-do-Pai. Assim, em relação à barra de significação, o significante do desejo da mãe fica embaixo desta barra e o significante Nome-do-Pai em cima. S2 sobre S1. No republicanismo o significante do desejo da mãe é a igualdade/liberdade, que aparece embaixo da barra de significação, em cima da qual aparece o significante Estado, ente de privação/controle por essência. Ao denunciar o republicanismo da Revolução, Sade mostra como este é contraditório, pois tal republicanismo só fez continuar por outros meios o gozo do Um sobre os demais. A máxima a que se refere esta continuidade seria: “posso gozar de seu corpo porque represento a 'Vontade Geral', me diz qualquer Estado republicano”. 

O republicanismo virtuoso da fase do Terror só fez ocultar a posição de senhor daqueles que compunham o Comitê de Salvação Pública, principalmente Robespierre. A escrita sadeana dirige-se, portanto, à fase virtuosa do republicanismo moderno. A vontade geral ficou condicionada a uma relação unívoca, que não garante à vontade que seja de fato geral. A vontade só se pode generalizar quando a sua aplicação é mútua. Para garantir o acesso mútuo à vontade Sade estipula a máxima: “posso gozar de teu corpo, pode dizer-me qualquer um”. Talvez possamos chamar isto de universalismo polimorfo ou polimorfia universalizada.

Para Sade o republicanismo virtuoso, apesar de trágico, é ainda um simulacro de republicanismo, já que funciona pela soberania do Um sobre os demais. O republicanismo autêntico sadeano significa dar um passo adiante na direção da soberania mútua entre todos, considerando que a única via de tráfego, unívoco ou mútuo, é a via do gozo. Sade considera o regime político unicamente como regime de gozo.

A Revolução propunha a felicidade, mas seus excessos não comprovaram isso. Já o republicanismo sadeano, em sua exortação dos excessos libertinos universalizados parece-nos menos triste que a carnificina virtuosa de Robespierre e seus confrades. Ao propor a universalização do acesso ao gozo Sade anula a possibilidade do mais-de-gozar? O republicanismo sadeano seria a única forma de superar o mais-de-gozar, já que nele não há limites ao gozo, logo todos gozam de todos e a permissividade legal sadeana, mais as obrigações comunitaristas postuladas pelo marquês, anulam toda concentração de possibilidades de gozo, inclusive as advindas da acumulação de mais-valia. A crítica de Sade ao republicanismo é uma crítica à economia de gozo da Revolução Francesa.

Na ordem atual os cidadãos comuns são as vítimas sadeanas voluntárias que se oferecem para o gozo dos governantes, seja como contribuintes, seja como ressentidos expectadores, choramingando diuturnamente contra a corrupção. Sade é aquele que revela o inconsciente político do republicanismo da Revolução. No republicanismo ideal proposto por Sade não há contradição, assim como no inconsciente. Sade também é um denunciador da servidão voluntária dos cidadãos , que o republicanismo de 89 fez funcionar.

O terrorista leninista, Slavoj Zizek, acha que o republicanismo atual é como café descafeinado, já que hoje a fase do Terror robespierreano parece-nos ter sido um desvio de intolerância e revanchismo, excessivo e sem propósito, apesar de não nos ser de todo repugnante a ideia de levar grande parte dos políticos brasileiros à guilhotina. Hipótese esta que se dissolve na reiteração cínica permanente da necessidade de se respeitar o Estado de direito. Numa situação onde o discurso republicano é articulado cinicamente, a interpelação sadeana parece não fazer sentido, pois pede “um esforço a mais” onde o sacrifício político utópico é mais estranho que um ser extraterrestre. Zizek é do tipo que ainda prescreve coisas como um “terror concreto' [algo como] a imposição de uma nova ordem sobre a vida cotidiana, item no qual, em última instância, [segundo ele] falharam tanto os jacobinos quanto a revolução soviética e a chinesa” (Zizek: 41).

Sade, no entanto, nos deixou o esclarecimento de onde nos levaria o idealismo terrorista da Revolução. O lado normalizante da modernidade foi muito bem explicitado por ele, que via na normalização republicanista o germe de um empobrecimento cultural, que foi posteriormente assinalado pela Escola de Frankfurt, por exemplo. Para Sade a navalha igualitarista da Revolução em sua ânsia de eliminar as diferenças produziria um quadro estético estéril no qual predominariam “peças fracas impostas pela força, romances insípidos, máquinas que idiotizam, cretinice e conformismo em massa, autores castrados de nascença, promoção com poses de avestruzes. Que vergonha, que tristeza, que ódio ao pensamento, que repressão!(...) O fanatismo os reúne [emigrados e revolucionários] na trindade eterna da burrice, da ignorância e do preconceito” (Sollers: 83).

Sade alinha o republicanismo autêntico com a generalização do crime porque entende os ideais republicanistas como uma forma de infantilismo político maquínico, que no seu afã de instaurar o reino da felicidade equivale igualistarismo e libertarismo a uma operação eliminadora do real das diferenças humanas. A Revolução acreditava piamente no republicanismo como um real possível e em sua paixão pelo real soltou à rua o demônio da equivalência absoluta dos humanos. Sade não deixa de referir esse encadeamento ao gozo. Na sua missiva mais famosa ele resume essa referência nos seguintes termos: “os horrores e os crimes acontecem em todas as épocas, e bem sabeis que meus romances estão incrementados deles para que eu possa revelar, pela primeira vez na história, sua nervura especial (grifo do autor). Sem mim, não tenho receio de dizer, os homens continuariam a se agitar em seu lodaçal de paixões e daí tirar prazer, sem se dar conta disso” (Sollers: 89-90).

Apesar de ateu e pregador do ateísmo, há fortes indícios de que Sade teria ido para o céu, se o céu existisse. Se houvesse deus, o deus dos cristãos, por exemplo, este teria perdoado os pecados do marquês em face da herança literária deixada por ele à humanidade, fruto de coragem e perspicácia raras entre os humanos. O principal de perspicácia na obra de Sade é aquilo que ela diz sobre “aquilo sobre o que não queremos saber”. Sade mostra a indivisibilidade entre crime e lei, que seus contemporâneos, marcadamente Kant, se esforçavam para negar com os artifícios retóricos mais sofisticados. 

O caminho sadeano para desatar o sujeito da lei é a disponibilização universal do crime, alguma coisa como um comunismo criminal.
Lacan interpela o republicanismo sadeano através do significante desejo. Para Lacan tal comunismo criminal é algo que resvala do desejo, convertendo a interdição em permissão. Sabemos através da obra freudiana que se não há lei “nada é permitido”. O laço social criminoso proposto por Sade continua a sancionar o supereu, portanto, a interditar o desejo por outros meios. Os meios mudam, mas os fins se conservam. Podemos falar aqui em imperativo superegóico sadeano. Nas palavras de Lacan: “A apologia do crime impele Sade apenas ao reconhecimento indireto da Lei. O Ser Supremo é restaurado no Malefício” (Lacan. 1998: 801).

Qual é a alternativa política da psicanálise ao republicanismo sadeano? Freud disse que governar é impossível. Freud é um niilista em matéria de política? Sabemos o quanto Freud foi ingênuo na avaliação política do Nazismo e o quanto isso o colocou em risco de morte junto com sua família. Freud parece que tinha um inconsciente político bovarista. Lacan também manteve-se distante da política, embora a reação deste diante do assédio nazista sobre sua mulher e sua sogra parece ter revelado um inconsciente político diferente do personagem biográfico Freud. A famosa frase lacaniana sobre a revolução também parece relevante: “a revolução sou eu!”. É o que ele parece sinalizar com sua interpelação ao texto “Franceses, um passo a mais se quereis ser republicanos”, em relação ao qual postula: “De um verdadeiro tratado sobre o desejo, portanto, pouco há aqui, ou mesmo nada” (Lacan. 1998: 802).

Para Lacan o fracasso lógico do panfleto sadeano supracitado se refere à sua crença no retorno ao estado de natureza como solução do imbróglio a que inscrição da lei nos condenou. Contra o terror revolucionário Sade nos convida à sua companhia prometendo-nos “que a natureza, magicamente, como mulher que é, nos fará cada vez mais concessões”(Lacan. 1998: 802). Para Lacan só pode haver um tipo de revolução, se é que se pode usar tal termo para designar algo que não pára de não se inscrever, já que a revolução lacaniana é da ordem de um bem-dizer do sintoma. Consequentemente, “a fórmula lacaniana do sujeito – como posição subjetiva articulada pela lógica significante – é a clareira que oferece um abrigo contra a soberania da natureza. Ela fornece o terreno para a discussão contemporânea do republicanismo.” (Silveira: 52).

A crítica lacaniana da política se pode fazer a partir da relação desta com o desejo. Alain Badiou considera o “pensamento lacaniano totalmente apolítico em seu próprio exercício, [mas Badiou pensa que Lacan] propõe ao pensamento uma espécie de matriz política” (Badiou & Roudinesco: 35). Segundo Badiou, há “uma continuidade entre o pensamento de Lacan e a atitude de tipo revolucionário, que reabre uma disponibilidade coletiva [que atualmente está] mergulhada na repetição ou barrada pela repressão estatal” (Badiou & Roudinesco: 35). Lacan se autodenominou o Lênin da psicanálise, o que se justifica por sua retirada da psicanálise do campo da cura médica e por sua crítica às promessas de felicidade do marxismo. Assim como Lênin, ele privilegia o potencial produtivo e inadaptável do desejo.

Para Roudinesco a psicanálise com Lacan torna-se “um vetor de emancipação, mesmo que se apresente sob formas explicitamente apolíticas” (Badiou & Roudinesco: 36). Essa psicanalista francesa pensa também que a defesa da inadaptabilidade do sujeito humano por Lacan foi um dos elementos que desencadeou o maio de 68 francês. Emancipação é um significante da mesma cadeia do significante revolução. Emancipação do capitalismo é como a esquerda chama a sua revolução. Se o sujeito está para sempre condenado à sua barra, à castração, a emancipação deste se pode dar em que termos? Parece-nos que a mais importante emancipação advinda da psicanálise é a emancipação da emancipação, ou seja, uma emancipação que equivale à pura e simples recusa da adaptação, já que o mundo emancipado da conotação “de esquerda” para essa palavra ainda parece acreditar na construção de um mundo ao qual o humano se possa adaptar plenamente.

A crítica lacaniana da emancipação tem como papel principal a rejeição de toda identificação, a busca por fórmulas novas de poder só engendram poderes piores que os atuais. O papel da luta política é ela mesma, não o alcance de algum ideal que a suprima como desnecessária. Luta de classes sim, mas sem revolução, ou uma revolução que seja a própria luta e não algum giro que se complete. Buscar com a luta a instauração de um processo permanente de saturação do poder pela insubordinação, que leve à supressão do medo da punição policial, social, política etc, generalizando uma resposta bartlebiana uníssona e infinita diante de qualquer proposição de submissão: “eu preferiria de não.” Lacan nos lembra como o marxismo foi um fracasso a este respeito e só fez reposicionar o discurso do mestre em outros termos. Logo o marxismo “que instaurou sua articulação sobre a função da luta, da luta de classes” (Lacan. 1992: 29).

O que a crítica lacaniana da emancipação denuncia principalmente é o esquecimento da esquerda de que “sempre há uma brecha ontológica, uma falha ontológica insuperável, incurável, entre o real e a realidade” (Alemán: 2). No entanto, é imensa a facilidade com que os maliciosos transformam isso em defesa do conformismo político. Por outro lado, fazer propaganda revolucionária articulada em torno da falta parece uma contradição em termos. A ideia de revolução emancipadora não causou tanto furor à toa, isso aconteceu porque é uma ideia extremamente sedutora. A crítica de Lacan parece uma arma também para se lutar contra a sedução política e contra a política da sedução.

Seguindo as pistas de Lacan, Alain Badiou retirou o significante comunismo do campo da utopia. Para Badiou o comunismo “é o verdadeiro nome do real como impossível” (Badiou & Roudinesco: 48). Até agora todos os que se envolveram na luta política em defesa de uma posição emancipadora o fizeram em nome de um real impossível. O que Badiou fez foi “dar nome aos bois”, num esforço de pontuar, psicaliticamente falando, no discurso emancipacionista uma formação do inconsciente político que insiste em obturar ideologicamente a falta constitutiva dos que habitam a linguagem. Resta saber quantos de nós ainda estão dispostos a se meter na defesa de algo da ordem de um real impossível, seja ele o comunismo, a democracia ou até mesmo o Estado de direito, migalha de reconhecimento este, que anda escasseando mundo afora.

A psicanálise, no entanto, mantém-se fiel à máxima subversiva contida na paráfrase do famoso ditado popular: “manda quem pode, desobedece quem tem juízo!”


Bibliografia


BADIOU, Alain & Roudinesco, Élizabeth. Jacques Lacan, passado presente. Rio de Janeiro: DIFEL, 2012.

BOBBIO, Norberto & outros. Dicionário de política. Brasília: Editora UnB, 1998.


LACAN, Jacques. O seminário, livro 17. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.

____________ Escritos: Kant com Sade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

KLOSSOWSKI, Pierre. Sade meu próximo. São Paulo: Brasiliense, 1985.


SADE, Marquês de. A filosofia na alcova. São Paulo: Iluminuras, 2000.


SOLLERS, Philippe. Sade contra o Ser Supremo. São Paulo: Estação Liberdade, 2001.

ZIZEK, Slavoj. Robespierre virtude e terror. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2008.

SILVEIRA, J. P. Bandeira da. Política brasileira em extensão: para além da sociedade civil. Rio de Janeiro: edição do autor, 2000.


Outros

ALEMÁN, Jorge. Operação esquerda lacaniana. São Leopoldo: IHU, 20/02/2011, http://www.ihu.unisinos.br/noticias/40768-operacao-esquerda-lacaniana






















domingo, 23 de março de 2014

Clientelismo e benevolência

por Almir Pereira

No debate que se seguiu à publicação de meu artigo “Oligarquia brasileira” (http://almirpereirablog.blogspot.com.br/2014/03/oligarquia-brasileira.html) um de meus interlocutores apontou a necessidade de uma elucidação mais minuciosa da diferença entre o clientelismo e a benevolência. A separação mais direta entre estes dois significantes é a que se refere à diferença da reciprocidade com o amor. Uma relação de reciprocidade é aquela que estabelece uma mutualidade entre as partes envolvidas. No amor a mutualidade não é uma condição de existência, ou seja, uma relação baseada no amor é unilateral e, mesmo que haja amor mútuo entre as partes envolvidas, a mutualidade nunca pode ser uma condição à priori para a existência do amor. O amor, inclusive, não surge se houver qualquer exigência de contrapartida. Só há amor se houver gratuidade.

A reciprocidade em torno da qual se estrutura o clientelismo, no entanto, não se dá entre partes iguais. Ela ocorre entre um cliente e um patrão, que intercambiam favores. O patrão fornece favores de ordem material e proteção atualmente e deixa aberta a hipótese de repetir isso no futuro. O cliente oferece em troca a sua lealdade e submissão, seja política, militar ou social. “Do lado do cliente a relação permite ter alguma segurança frente a necessidades futuras; do lado do patrono, a habilidade de manipular a esperança permitirá ampliar ao máximo possível a sua clientela com uma quantidade limitada de benefícios” (Avelino Filho. 1994: 229).

Uma relação de poder baseada no amor ao senhor por parte daqueles que a este estão submetidos se estabelece em troca da benevolência do senhor. Não que o senhor abra mão de suas prerrogativas de senhor, como a de castigar os que a ele estão submetidos, quando estes não cumprem alguma obrigação. A benevolência não é abrir mão das prerrogativas de autoridade, mas oferecer estima e afeto mesmo mantendo as prerrogativas do domínio, oferta que deve ser feita gratuitamente. Se não houver gratuidade os submetidos saberão que se trata de uma oferta que exigirá deles alguma contrapartida, que se trata de um gesto que busca sua lealdade, mas não conota amor.

O dicionário mais importante entre os que tem a política como objeto, o de Bobbio, curiosamente, não traz um verbete para o significante submissão nem para o tema da “servidão voluntária”. Como não é nosso objetivo aqui, apenas aproveitamos para deixar registrado este fato intrigante. Ao inserirmos em um buscador na internet a expressão “benevolência política”, nos deparamos com uma frase atribuída a Maurício de Nassau, chefe da ocupação holandesa de Pernambuco no século XVII, que diz o seguinte: “os portugueses serão submissos se forem tratados com cortesia e benevolência; sei por experiência que o português é gente que faz mais caso da cortesia e do bom trato que de bens”. Independente da veracidade da autoria ou do diagnóstico da frase, esta faz uma ótima distinção do que significa dominar pelo afeto em oposição ao domínio pela troca.

Em discurso de comemoração dos 10 anos do programa Bolsa Família, a presidente Dilma Roussef afirmou que esse programa varreu “as políticas clientelistas centenárias do nosso País” e emendou que a transferência de renda “significa poder de escolha, poder de decisão sobre o que é melhor para si e para sua família” (http://noticias.terra.com.br/ 30/10/2013). A presidente quis deixar claro que o Bolsa Família não é clientelista porque não exerce controle sobre seus beneficiários com base na política do favor. Nas “políticas clientelistas centenárias” a clientela ficava condiciona a como, a quando e a o que os patrões políticos locais estivessem dispostos a oferecer a seus clientes. Além de não ficarem devendo favor ao Governo Federal, os beneficiários do Bolsa Família dispõem de um recurso permanente e universal, uma cota mensal em dinheiro, garantindo a eles o “poder de escolha” a que se referiu a presidente na busca de demonstrar o caráter benevolente desse programa.

O Bolsa Família é um programa que altera o quadro onde o “clientelismo secular” atua, porque este “tende a se nutrir das situações de escassez, ao manter grande número de pessoas dependentes de recursos escassos, todos controlados e manipulados pela máquina política” (Avelino Filho. 1994: 229). Como os beneficiários do Bolsa Família tem sua escassez monetária diminuída, embora ainda muito longe de ser eliminada, isso traz uma exigência de reciclagem das estratégias usadas pelas oligarquias. Nesse sentido proliferaram os programas municipais e estaduais que destinam somas mensais em dinheiro para as famílias pobres, nos mesmos moldes do Bolsa Família.

Na fala da presidente a benevolência que caracteriza o Bolsa Família foi agenciada como uma forma de crítica do clientelismo, gesto que frisa a negatividade deste para destacar a positividade daquela. Essa operação traz a necessidade de um passo a mais na crítica política, para demonstrar que a benevolência não se situa num campo oposto ao do clientelismo, como querem fazer crer os adeptos dela. Ela é parte integrante do sistema de dominação oligárquica e uma forma mais meticulosa de poder, porque estabelece o domínio pela via da submissão desejada. Pela benevolência o dominador faz uma demanda gratuita ao dominado, para conquistar a adesão voluntária deste à relação de dominação.

A descrição da técnica afetiva de domínio escravocrata luso-brasileiro, feita por Gilberto Freyre em sua obra, foi a inspiração de José Paulo Bandeira para tornar o significante benevolência um significante da leitura da política (Silveira. 2014). A referência deste significante à cultura política brasileira tornou possível uma crítica política do Bolsa Família sem incorrer nos erros que outros analistas incorreram, principalmente aqueles que tentaram fazer desse programa uma extensão da política do favor. É justamente por ultrapassar a lógica clientelista que o Bolsa Família se mostra tão impermeável à crítica, mas também porque a cultura da benevolência tem um forte enraizamento no inconsciente político, seja no Brasil seja no restante do mundo. Mesmo os regimes socialistas, nascidos de uma aspiração emancipacionista, ao converterem-se em regimes oligárquicos de opressão política passaram a ser justificados por seus “benefícios sociais”.


Bibliografia

AVELINO FILHO, George. Clientelismo e política no Brasil, revisitando velhos problemas. São Paulo, revista Novos Estudos, CEBRAP, N.° 38, março 1994, pp.225-240.

BOBBIO, Norberto & outros. Dicionário de política. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1998.

SILVEIRA, José Paulo Bandeira da. Oligarquia e política. Rio de Janeiro: edição do autor, livro digital, Livraria Saraiva, 2014. http://www.livrariasaraiva.com.br/produto/6919323

Outras fontes

Terra, portal de notícias: http://noticias.terra.com.br/ , 30/10/2013.

domingo, 16 de março de 2014

William Waack

Começo com uma citação: “essa revolução, conforme o Reginaldo Nasser afirmou ao final do primeiro bloco do programa, foi já dominada pelos oligarcas, que é uma palavra bonitinha para dizer: pela 'máfia' na Ucrânia?

Esta citação foi extraída da fala do jornalista Willian Waack, na abertura do segundo bloco do programa Globonews Painel, no último dia 08 de março. A parte em itálico da citação foi dita em tom irônico, ironia que o próprio sentido da palavra “bonitinha” também conota. Porque o uso da palavra “oligarcas” em tal contexto irritou o jornalista? Waack, segundo o verbete da Wikipédia que leva seu nome, também é formado em sociologia e ciência política. Supostamente, ele teve um contato racional com termo oligarquia, referido, no mínimo, aos usos básicos do termo, como na obra de Aristóteles, na historiografia da República Velha etc. Ele sabe, portanto, que oligarquia é um termo de uso pejorativo consagrado e que quando se chama alguém de oligarca é com a intenção de apontar que este exerce um poder humanamente negativo. Como pode a palavra oligarca ser bonitinha? Oligarca virou uma palavra bonitinha porque Waack chamou por um significante mais forte: o significante máfia, que é muito mais feio, porque também é assustador.

O que Waack fez foi uma operação ideológica que menosprezou no imaginário do espectador relevância das oligarquias na política atual. Um programa de TV faz laço com o espectador médio. Associar para este o termo oligarca como sendo da ordem do eufemismo, como fez Waack, é censurar no imaginário a emergência da discussão em torno do fenômeno oligárquico. Fenômeno crucial da política e da economia mundiais atuais. Do qual o caso da política e da economia ucranianas são sintomas típicos. Reprimir o debate em torno da política oligárquica ucraniana é reprimir uma parte fundamental do debate político atual como um todo. Máfia é um significante do campo da criminologia. Quando um fenômeno criminológico adquire caráter político, a sua atuação no campo político tem que ser desvelada com significantes da análise política, não da criminologia. Como aluno de ciência política que foi, Waack sabe disso.

A irritação de Waack com a palavra oligarca, irritação que ele converteu em ironia censuradora do termo, foi uma operação da ordem do inconsciente político. Tentando forçar a discussão girar em torno do significante máfia, Waack propôs evitar a discussão da forma política que as máfias adquirem quando passam para o campo da política: a forma oligárquica. Quando se transformam em oligarquia o que as máfias têm em comum com as demais formas de oligarquia? O uso privado da esfera pública dentro da legalidade. A história das máfias mostra que elas nem sempre aspiram a ascensão à posição de oligarquia: caso do PCC, mas há outros em que sim, como parece ser o dos cartéis da droga na Colômbia e no México, já que uma oligarquia pode fazer o que a máfia não pode: usar a riqueza e o poder públicos como instrumento para si. Será que só as atividades mafiosas das oligarquias é que são repugnantes para Waack? Será que para ele uma oligarquia que opera apenas na legalidade política e econômica, se é que existe alguma, não se constitui num problema político “feio”? Feio no sentido de algo que deva nos causar repúdio.

Waack trabalha para a TV Globo, uma empresa de profundas raízes oligárquicas, cujas origens remontam à associação ilegal com o capital estrangeiro do grupo estadunidense Time/Life e à concessão de um bem público para exploração privada, esta conseguida de um regime político surgido e sustentado na violação da lei, a ditadura civil militar de 1964. A atuação política e econômica da TV Globo sempre se caracterizou pela vertente oligárquica. Não é uma empresa nascida nem desenvolvida num ambiente de concorrência de mercado, por isso sequer pode ser considerada uma empresa capitalista moderna. Alavancada pelo sistema Embratel durante a ditadura, tornou-se já nos anos 1980, um dos maiores monopólios televisivos do planeta. Sua atuação política sempre se pautou pela associação ao governo de plantão no Palácio do Planalto e em 1989 não teve nenhum pudor de usar sua influência para favorecer Collor de Mello no segundo turno da eleição presidencial. Collor era então o candidato da oligarquia brasileira (http://almirpereirablog.blogspot.com.br/2014/03/oligarquia-brasileira.html).

No último ranking dos homens mais ricos do Brasil os três herdeiros das Organizações Globo, TV Globo inclusive, estão entre os sete homens mais ricos do Brasil. Segundo a Revista Forbes, que faz esse ranking, as fortunas dos três irmãos Marinho, herdeiros da TV Globo e demais negócios da família, soma um valor de quase R$ 52 bilhões. Individualmente, segundo tal revista, só haveria no Brasil quatro pessoas mais ricas que cada um dos irmãos Marinho, já que caberia a cada um uma fortuna de mais de R$ 17 bilhões. Oligarquia para Aristóteles era o governo de poucos e voltado para o interesse desses poucos, ou seja, o governo do ricos para deixar os ricos mais ricos ainda.

sábado, 8 de março de 2014

Oligarquia brasileira

por Almir Pereira

Na página do jornal Folha de São Paulo (FSP) na internet há um campo para pesquisas nos arquivos deste jornal. Para se pesquisar é preciso optar pelos arquivos da edição impressa ou da edição digital. Inserindo o termo “oligarquia” neste campo e optando pela busca nos arquivos da edição digital, aparecem 315 resultados. Para se ter um parâmetro de comparação: quando se insere, na mesma busca, a palavra “política”, aparecem quase 558.000 resultados. Quando é inserida a palavra “corrupção”, aparecem pouco mais de 145.000 resultados . Inserida a palavra “democracia” temos cerca de 19.000 resultados. Para “ditadura” aparecem cerca de 10.500 itens e para “partidos políticos” temos quase 9.000 resultados.

As 315 ocorrências da palavra “oligarquia” nos arquivos da FSP, versão digital, referem-se a matérias de diversos tipos. Vão do noticiário internacional aos textos de humor, passando pelo caderno de cultura e todos os demais setores do jornal. No uso do termo destacam-se as matérias sobre a política venezuelana, depois as sobre os demais países da América Latina e em seguida a política regional no Brasil, muito especialmente a política dos estados do Nordeste. Em 12/02/2014, dia em que foi feita a pesquisa, a ocorrência mais recente da palavra “oligarquia” foi em uma matéria de 11/02/2014, e a ocorrência mais antiga foi em 07/08/2000. Cerca de treze anos e meio foi o tempo transcorrido entre elas. Nas 315 ocorrências a palavra “oligarquia” é usada em sentidos e contextos variados.

Nosso objetivo não era saber só da incidência do termo nos arquivos pesquisados. Aferida a incidência, passamos a analisar o sentido no qual a palavra “oligarquia” foi usada em cada uma delas. Fizemos isto em busca de matérias que usassem a palavra oligarquia para designar “a prática da apropriação privada dos recursos públicos (todo tipo de recursos, não só os financeiros) por agrupamento político de abrangência nacional”.

Das 315 ocorrências do termo “oligarquia”, apenas dez (10) foram em matérias que relacionaram este termo com a esfera política brasileira em nível nacional. Destas dez (10), somente quatro (04) matérias, trouxeram o termo com conotações que designam, direta ou aproximadamente, a privatização da esfera pública pelos governantes. Nas outras seis (06) ocorrências, daquelas dez (10), o termo “oligarquia” foi usado com a conotação de “apropriação permanente do poder político por um determinado grupo e a busca deste por perpetuar seu domínio”, sem se referir, no entanto, ao tipo de uso que tal grupo faz da coisa pública.

O domínio do privatismo sobre a esfera pública brasileira como consequência de uma tradição oligárquica é um tema com extensa elaboração na sociologia e na ciência política nacionais, no entanto, nossa pesquisa nos arquivos da FSP dá margem para deduzirmos que a associação entre “oligarquia” e uso privado da esfera pública, consagrada nas ciências sociais, praticamente é nulo na produção jornalística atual, considerando que os arquivos dos últimos 14 anos do maior noticioso diário do país seja um medidor representativo do jornalismo nacional no período. Apresentamos abaixo, em ordem cronológica invertida, as quatro (04) ocorrências encontradas nos arquivos pesquisados, que representam um resíduo quase nulo de uso do termo “oligarquia” associado ao privatismo político.

Em 23/06/2013, comentando as passeatas que ocorriam naqueles dias por todo Brasil, um leitor, em carta ao jornal FSP, concorda com o “ministro Gilberto Carvalho quando [este] diz que sem partidos não há democracia”. E segue dizendo: “Só que ele [Carvalho] se esqueceu de que no Brasil não há partidos, uma vez que todos se venderam aos donos do poder para obter benesses e se esqueceram do povo. Eles não representam a sociedade, mas a si mesmos. Hoje, sob o nome de democracia, vivemos numa oligarquia que comanda a nação, por isso o povo está na rua. (Jurandir Penha, Sorocaba SP)”.

O leitor associa claramente o termo oligarquia a um domínio associado dos partidos políticos e dos “donos do poder” sobre o povo, domínio “que comanda a nação”, segundo ele. Tal domínio, aos olhos do leitor, anulou qualquer lógica de representação popular pelos partidos, o que o leva a concluir “que no Brasil não há partidos”, já que partidos políticos só fazem jus efetivo à sua designação quando competem entre si pela melhor representação do povo. Representação cuja efetividade, aos olhos do leitor, é algo contrário aos interesses daqueles que este chama de “donos do poder”, e teria sido exatamente “para obter benesses [concedidas pelos donos do poder, que os partidos] se esqueceram do povo”.

Como não há na carta uma argumentação sobre como isso ocorreu historicamente, não podemos estabelecer como o leitor chega a tais conclusões, mas a linha de raciocínio dele parece-nos clara e seu uso do termo “oligarquia” muito coerente com o significado que propusemos acima. A carta entende as relações de poder numa perspectiva mais ampla do que a nossa definição de oligarquia, pois estabelece um contexto social para o funcionamento da ação política. Quando ela estabelece a existência de “donos do poder”, por consequência está dividindo a sociedade entre estes a aqueles que não têm o poder. Como também diz que é dos “donos do poder” que os políticos obtêm “benesses”, podemos concluir que se trata dos “donos do poder” econômico.

A definição de oligarquia em Aristóteles concorda com o uso que fez do termo o leitor da carta supracitada, já que para este filósofo grego a “oligarquia é um mau governo (…) porque governa obedecendo aos interesses dos governantes e não do povo”(Bobbio. 1998: 837). Assim como no raciocínio da carta, Aristóteles não opera com a formalidade institucional do regime político, mas com a análise do exercício factual do poder soberano pelos grupos e classes que compõem a sociedade. Quando o poder soberano é exercido por e pela maioria de homens livres e pobres, para ele há uma democracia. Já quando a soberania é exercida por e pela minoria de ricos, é de uma oligarquia que se trata (Aristóteles. sem data:115). Para justificar as jornadas de junho de 2013, a carta citada acima diz que “hoje, sob o nome de democracia, vivemos numa oligarquia”, ou seja, nessa perspectiva as instituições da democracia brasileira atual tornaram-se um simulacro de democracia, que serve para dissimular o funcionamento real da política nacional em termos opostos a um funcionamento democrático efetivo, quais sejam: os termos de um funcionamento oligárquico.

Hélio Schwartsman, bacharel em filosofia, articulista da FSP, publicou nesta, em 04/11/2010, um artigo de avaliação dos resultados de 08 anos do Governo Lula. A certa altura do texto ele diz que entre “2003, e a eclosão do escândalo do mensalão, em 2005, o PT passou de partido principista, que não admitiu nem mesmo participar do “espúrio” Colégio Eleitoral que elegeu Tancredo Neves e pôs fim a ciclo autoritário, a legenda pragmática radical, que se alia sem hesitar aos Sarneys, Collors e Renans deste país.” Para afirmar na sequência que “qualquer transformação minimamente progressista do Brasil passaria por contrariar ativamente os interesses dessa oligarquia (“Sarneys, Collors e Renans deste país”). Não fazê-lo é, na minha leitura, o atestado de óbito ideológico do PT.” A causa desse suicídio ideológico estaria, segundo o articulista, no fato de que “quando chegou ao Planalto e teve a oportunidade de pelo menos tentar modernizar o Brasil, o PT preferiu o caminho mais confortável de compor com os inimigos de ontem para com eles partilhar as prebendas de hoje – e de amanhã.” Consequentemente, segundo Schwartsman, “o governo Lula representou uma mera troca de guarda entre os inquilinos do poder”, decepcionando “quem apostava no PT da ética e dos princípios republicanos”.

O artigo de Schwartsman, concorda com nossa caracterização do termo “oligarquia” como sendo a privatização do poder público por quem o exerce. Ele associa a palavra a agrupamentos de personagens políticos (“Sarneys, Collors e Renans deste país”) que mantêm sob seu controle importantes posições no poder político nacional há muito tempo, com o objetivo de gozar das “prebendas de hoje – e de amanhã”, que são garantidas por esse controle. Além disso, a lógica da oligarquia também está presente na caracterização da trajetória do PT pelo autor, que pode ser alinhada com as transformações dos partidos socialistas europeus observadas por Robert Michels (Souza. 1966) no sentido da oligarquização desses partidos.

Para Schwartsman a trajetória do PT é uma passagem de “partido principista”, ou seja, que atua principalmente pela defesa de ideais (princípios), para uma posição que ele chama de “pragmática radical”, que interpretamos como: desejo de estar no poder a qualquer preço. Para Schwartsman a causa desta mudança de orientação se deu com o objetivo de uso da esfera pública para o gozo privado dos membros do partido, pois, para o PT agora, governar é “compor com os inimigos de ontem para com eles partilhar as prebendas de hoje – e de amanhã.” O paralelismo com as constatações de Michels em relação aos partidos socialistas europeus, mencionadas acima, salta aos olhos. Criado para ser um meio de construção do socialismo, o Partido Socialista Italiano, por exemplo, segundo Michels, se transformou “em um fim em si mesmo, visando interesses e vantagens próprios”(Souza:101), e isso o leva a “um desligamento da classe que representa”(Souza:101). No caso do PT, segundo Schwartsman, a adoção do comportamento oligárquico levou este partido a desligar-se “da ética e dos princípios republicanos” e, por isso, a assinar seu “atestado de óbito ideológico”.

Mesmo quando aponta o período em que o PT era um partido que defendia princípios, Schwartsman mostra insatisfação com o radicalismo com que o PT atuava. Daí o PT ser chamado por ele de “principista” e não simplesmente de partido de princípios. “Principista” remete a alguém apegado a princípios mais do que o normal. Talvez quase um fundamentalista. Esse “principismo” petista é ironizado por Schwartsman em relação à negativa do PT de participar do Colégio Eleitoral que elegeu Tancredo Neves. Para o articulista da FSP a eleição indireta de “Tancredo Neves pôs fim ao ciclo autoritário”, da ditadura civil militar de 1964. Não participar, pragmaticamente, de evento tão relevante para a democracia por apego a princípios, alegando que o Colégio Eleitoral era um acordo espúrio, como fez o PT em 1984, do ponto de vista de Schwartsman, revela o quanto o PT agia por “principismo” e não por princípios, já que o Colégio Eleitoral teria sido a forma concreta de assegurar os princípios democráticos, segundo o que se pode deduzir das palavras do articulista.

É preciso uma digressão sobre isso. A ironia de Schwartsman não tem base na realidade, pois desconsidera que o Colégio Eleitoral foi um freio ao processo de democratização e um golpe da oligarquia brasileira, da qual Tancredo era parte, para esta arrebatar uma maior fatia do poder federal do que aquela que já tinha sob os militares. E foi o que aconteceu no Governo Sarney, que caracterizou-se por uma postura autocrática, pela articulação do Centrão na Constituinte e pelo aumento do mandato presidencial para 05 anos em função do gozo do poder pelo Presidente e pela oligarquia. Isto postergou em mais um ano a data para a eleição direta do Presidente da República. A eleição de Tancredo Neves somente pôs fim ao ciclo dos presidentes militares. O “fim do ciclo autoritário”, ao nível da Presidência da República, só aconteceu com a posse de Itamar Franco, em 1992. Esse período da história brasileira foi amplamente estudado e documentado em livro (Silveira. 2013) que desmistifica a visão oficialista, defendida por Schwartsman no artigo supracitado. Em relação ao Colégio Eleitoral é Schwartsman quem defende a posição oligárquica, enquanto que o PT da época sustentou uma posição democrática heroica. Heroica porque até hoje é injustamente condenado por isso, como mostra o artigo que estamos discutindo.

Passemos agora à afirmação de Schwartsman de que o PT “quando chegou ao Planalto (...) teve a oportunidade de pelo menos tentar modernizar o Brasil”. O que não seria simples dado que, para o articulista, “qualquer transformação minimamente progressista do Brasil passaria por contrariar ativamente os interesses [da] oligarquia”, ou seja, a oligarquia brasileira seria o fator político que impede a construção da modernidade no país. Concordando com isso emendamos: fator que trava principalmente a implantação da modernidade política ao nível do Estado brasileiro. Enquanto era “principista”, a ação política do PT ajudou a explicitar isso, inclusive denunciando o Colégio Eleitoral como traição oligárquica à campanha das “diretas já”, esta sim, representante inquestionável da modernidade política.

Uma das quatro (04) ocorrências de nossa pesquisa nos arquivos da FSP, que nos propomos a analisar aqui, é uma reportagem publicada em 13/12/2006, com argumentos do então governador de São Paulo, Cláudio Lembo, avaliando o abandono do discurso de esquerda e a adoção de um tom centrista por Lula durante a campanha eleitoral em que este buscava sua reeleição à presidência da República. Para Lembo “a mudança de tom do presidente se deu por sua percepção de que o PT perdeu sua identidade, se tornando o mais conservador dos partidos e uma grande oligarquia nacional”. Lembo, à época, dizia que “a proposta de Lula de formar um governo de coalizão não daria certo por reunir membros muito heterogêneos, entre eles as oligarquias brasileiras, que são sempre muito vorazes na busca por cargos públicos”.

Ao dizer “que o PT perdeu sua identidade, tornando-se o mais conservador dos partidos e uma grande oligarquia nacional”, Lembo diz que a identidade que o PT perdeu não era nem conservadora e nem oligárquica. O que está em harmonia com a identidade atribuída ao PT pelo artigo de Schwartsman, como sendo este um partido que representava a esperança em um governo de “princípios republicanos”. Tendo abandonado sua identidade, o PT, segundo Lembo, aderiu as coisas que combatia: o conservadorismo e a oligarquia.

Hoje, mais de sete (07) anos depois das declarações de Lembo, sabemos que elas erraram em sua previsão de provável fracasso, que Lula teria em seu segundo mandato ao manter numa coalizão “membros muito heterogêneos, entre eles as oligarquias brasileiras”. Como não há no texto uma especificação desta heterogeneidade não dá para supô-la aqui, mas como Lembo designa o PT como “uma grande oligarquia nacional” e depois fala de uma coalizão heterogênea deste, e outros, com as “oligarquias brasileiras”, parece que a heterogeneidade é entre as oligarquias tradicionais (estaduais e familiares etc) e a “grande oligarquia nacional”, em que se teria convertido o PT, segundo Lembo. Heterogeneidade contraditória com o próprio diagnóstico das declarações, já que, para Lembo, o PT e “as oligarquias brasileiras”, são oligarquias, de onde viria a heterogeneidade entre coisas de mesma natureza? Se, apesar de terem a mesma natureza, mesmo assim, seja possível falar em heterogeneidade, como caracterizar esta? São questões que as declarações de Lembo deixam no ar.

A caracterização, por Cláudio Lembo, das “oligarquias brasileiras” como sendo “sempre muito vorazes na busca por cargos públicos”, aproxima-se da ideia de oligarquia que é nosso foco aqui, pois, é claro, tal voracidade não se explica em função de espírito público, mas de poder auferir vantagens privadas pelo controle de tais cargos. Entretanto, há uma ressalva que deve ser feita aqui, a voracidade por cargos públicos não é específica das oligarquias. Max Weber, depois de estudar a natureza dos partidos políticos em Estados modernos, chegou à conclusão de que “todas as lutas entre partidos não são apenas por fins objetivos, mas também, e sobretudo, lutas pela patronagem dos cargos” (Weber. 2012: 546). Não são apenas as oligarquias que são vorazes por cargos públicos, é a própria lógica de domínio político moderno através de partidos, quem engendra tal voracidade.

A última das quatro ocorrências do termo oligarquia, que será analisada agora, é uma reportagem publicada em 21/05/2010, na qual são apresentadas declarações de José Serra, então pré-candidato à presidência da República pelo PSDB. No trecho que nos interessa aqui, e que foi o motivo da matéria, Serra afirma que “o Brasil vive o momento mais patrimonialista da história. Nem na República Velha, que era uma oligarquia, foi assim”. Um dia depois o jornal O Estado de S. Paulo repercutiu as mesmas declarações, porém, nesta versão, Serra teria dito que “nem na República Velha, que era um regime oligárquico, tinha um patrimonialismo selvagem como o de hoje”. Esta versão apresentou o significado dado por Serra ao termo patrimonialismo, como sendo a prática de “usar o governo como propriedade privada”.

As declarações de José Serra são em torno do tema patrimonialismo. No entanto, a conotação que Serra 
dá a este termo é a mesma que usamos para caracterizar a prática política oligárquica, qual seja, a prática de “usar o governo como propriedade privada”. Para salientar sua acusação, de que o Governo Lula usaria a coisa pública como um patrimônio particular, Serra diz que em tal governo este uso seria “selvagem”, ou seja, livre de restrições morais. Serra não acusa o Governo Lula de ser uma oligarquia, mas diz que a suposta prática privatista deste é pior que a de um período reconhecidamente oligárquico: o da República Velha. O uso privado da esfera pública é algo permanente na república brasileira, do início desta até os dias atuais, como as declarações de Serra propõem?

A permanente apropriação privada da esfera pública é o que caracteriza a prevalência do “discurso oligárquico” (Silveira. 2014: 12, 13 e 14) na política brasileira, que se impôs já antes da proclamação da República. Originário do colonialismo senhorial e atomístico, ele sofreu algumas mutações desde então, mas estas só alargaram sua abrangência e poder, não afetando sua essência: atrofia de funcionamento público da esfera pública. Uma série de estudos sociopolíticos do Brasil estabeleceram os significantes que fazem parte da lógica política oligárquica.

O sociólogo José de Souza Martins identificou na política do favor o alicerce do Estado brasileiro e um impedimento para a separação do público e do privado. No Brasil, para Martins, nas relações dos indivíduos com o Estado, estes são induzidos a trocarem favores com a oligarquia para efetivarem suas demandas (Martins. 1999: 29). A política do favor da tradição oligárquica perverte a representação política, pois nesta tradição “o mandato é sempre um mandato em favor de quem está no poder, pois é daí que vêm as retribuições materiais e políticas que sustentam o clientelismo”(Martins: 33).

Também no processo de modernização econômica do Brasil as transações com o Estado, em termos de troca de favores, foram determinantes, tendo sido tais transações a gênese da “moderna burguesia brasileira”(Martins: 30 e 31). Ao contrário do que pregam certas crenças, o clientelismo político, ou seja, a troca de favores políticos por benefícios econômicos, se instalou no Brasil como uma relação entre poderosos e ricos, pois os pobres só adquiriram importância política, com o voto. O que se deu tardiamente em relação à formação do Estado. Mesmo quando a oligarquia se viu alijadas do comando do poder nacional e de alguns estados, quem passou a comandar não governou sem uma aliança com ela, já que ela continuava a controlar as redes clientelistas ao nível dos municípios. Foi o que aconteceu depois da Revolução de 30, no governo Vargas e depois do golpe de 64 nos governos militares.

Martins vê no favor algo que não é só restrito à esfera da política brasileira. Ele postula a existência de uma extensa “cultura do favor” que, inclusive, passa por um processo de modernização. Um dos exemplos disso seria um programa televisivo de auditório que fez sucesso por décadas através da concessão de prêmios aos espectadores. Ao contrário de Martins, não associamos a lógica desses programas de TV à “cultura do favor”, pois trata-se de uma oferta unilateral que não estabelece um vínculo de reciprocidade. Nos últimos anos esta lógica se tornou mais sofisticada e está presente em vários programas da TV aberta. Um destes programas, talvez o de maior audiência, se dedica à recuperação de automóveis em avançado estado de decomposição e à reforma de habitações precárias de pessoas pobres. O apresentador deste programa, para quem a presença na mídia gera uma renda anual de milhões de reais, cogitou candidatar-se à Presidência da República para, segundo ele, “poder ajudar” (revista Alfa: abril/ 2011). Parece que seria correto classificarmos esta parte da programação televisiva como sendo “entretenimento oligárquico”.

Foi durante a última década que os programas de auditório da TV aberta aperfeiçoaram seus mecanismos voltados para a população pobre. Paralelamente, em nível federal, no mesmo período, era produzida uma série de políticas para a população de baixa renda, das quais a mais importante é o programa Bolsa Família. Através da distribuição direta de dinheiro público à população pobre produziu-se um dispositivo para além da política do favor, entre o Presidente da República e dezenas de milhões de brasileiros, principalmente do Nordeste. Alguns meses antes da eleição de 2006 o Bolsa Família beneficiava 11,4 milhões de famílias, ou seja, mais de 50 milhões de pessoas (Singer. 2012: 64). Com o Bolsa Família a cultura política oligárquica passa a funcionar por outros meios. No Nordeste as massas pobres substituem, parcialmente, a política do favor das oligarquias regionais pela relação monetária com o Estado, vista pelas massas como benesse do senhor lulista (Silveira. 2014: 90-91). “O uso político privado do pobre [, não só o do Nordeste,] é o desejo do senhor do lulismo” (Silveira. 2014: 94), ou seja, uma forma de uso privado da esfera pública.

A transação entre Lula e as massas pobres é uma relação reconhecível como uma formação do inconsciente político das massas. No inconsciente político destas, especialmente as do Nordeste, Lula é o equivalente do senhor colonial “benevolente”, que provia os escravos de alimentação farta, forte e saborosa, apresentado por de Gilberto Freyre (Silveira. 2014: 32-33). É a demanda das massas por um pai protetor que Lula atende, e consegue em troca a “servidão voluntária” delas. É um tipo de troca que se opera no âmbito caloroso dos afetos e não no âmbito frio da relação comercial. A benevolência do senhor escravocrata não garantia a este a docilidade de todos os escravos, afinal existiam os quilombolas. Também não foram todos os eleitores beneficiários do Bolsa Família que reelegeram Lula. No entanto, uma grande maioria destes beneficiários, especialmente no Nordeste, demonstrou com o voto a sua gratidão ao senhor lulista. É preciso lembrar que na história do Brasil o agenciamento da servidão voluntária das massas não é exclusividade do lulismo. Getúlio Vargas também aplicou este saber sobre as massas populares. Em ambos os casos a Presidência da República tornou-se um lugar de retorno do discurso do senhor colonial brasileiro, agente basal do discurso oligárquico, sob a forma do magister latino (Silveira. 2014).

O discurso do senhor colonial consistia do uso privado exclusivo do excedente econômico e se estendeu ao uso privado dos recursos públicos, na colônia e para além dela. Gilberto Freyre sintetiza tal lógica como sendo a de um “privatismo excessivo” (Freyre. 1996: XXXV). Nos núcleos urbanos que experimentaram algum crescimento ao longo do Século XIX, esse privatismo excessivo é fácil de ser percebido, “porque os jardins, os passeios chamados públicos, as praças cercadas de grades de ferro, se limitaram ao uso e gozo da gente de botina, de cartola, de gravata, de chapéu de sol – insígnias de classe” (Freyre: XLII), diríamos: da classe senhorial. Esse excesso também se manifestava como desprezo pela própria via pública que deveria servir a todos como local de passagem. Freyre dá vários exemplo de como a rua era tratada como terra de ninguém pelos habitantes do sobrado senhorial. Já em 1961, Freyre mantinha, sem alteração, no seu prefácio de Sobrados e mucambos, a pontificação que havia escrito décadas atrás: “O privatismo patriarcal ou semipatriarcal ainda nos domina” (Freyre. XLVII).

Tal ordem social produz um discurso político que é uma extensão da lógica doméstica sobre a esfera pública. Para Weber um Estado tem estrutura patrimonial quando a lógica que organiza o poder doméstico de um príncipe é a mesma que este usa para organizar seu poder político. “No patrimonialismo o poder doméstico está associado à família real. No Brasil ele está associado à casa-grande” (Silveira. 2001: 25). Gilberto Freyre cunhou o termo familismo para designar a forma brasileira do patrimonialismo. A família foi a unidade de imposição e expansão do poder colonial português pelo território que hoje constitui o Brasil. Ela foi a base de expansão do Estado lusitano, este seguiu tal expansão apenas sancionando-a e não determinando-a ou condicionando-a (Freyre: XXXIII).

Mas não foi a família nuclear moderna tal qual a de hoje, foi a família extensa instalada em latifúndios de caráter social feudal (embora não de caráter econômico feudal) e dominada pelo poder absoluto do patriarca, que impunha sua vontade à mulher, aos filhos, aos seus empregados livres e aos escravos. É esse poder doméstico, familiar e “da família”, que os senhores coloniais expandiram sobre as instituições públicas. Desde o início o movimento de urbanização da sociedade brasileira teve como seu principal problema a contenção do privatismo das casas, especialmente dos sobrados patriarcais, sobre os logradouros e o desprezo destas casas por regras de urbanidade necessárias à existência da rua como efetivo espaço público (Freyre. 1996). Atualmente quem acompanha o noticiário sabe que este problema perdura até hoje, na maioria das cidades brasileiras.

A interpretação e a prática do republicanismo pelo poder familiar patriarcal também demonstraram a particularidade torpe através da qual tal poder simula as ideologias políticas modernas. Na ótica senhorial a república deveria servir para “assegurar ao país a ordem necessária ao desenvolvimento material das cidades e à mecanização de indústrias e lavouras” (Freyre: LXX). Daí a preferência pelo lema positivista, que a República escreveu em nossa bandeira nacional, alheio ao ideais da Revolução Francesa (“liberdade, igualdade e fraternidade”). Freyre chega a citar o exemplo de líderes republicanos brasileiro de origem plebeia e mestiça que, alçados ao poder, se distinguiram como chefes de polícia que na busca pela manutenção da ordem usavam excessivamente de violência contra a população pobre e negra. Sintoma claro de uma república oligárquica de famílias patriarcais latifundiárias, que continuava a aterrorizar seus ex-escravos e os fazia sentir saudades da princesa Isabel, maternalmente idealizada por estes como um consolo à brutalidade da oligarquia republicana.

Gilberto Freyre faz a arquitetura derivar do inconsciente político oligárquico. O privatismo deste mais uma vez fica explícito quando este sociólogo aponta o quanto as suntuosas residências urbanas das famílias senhoriais, do período do Império, “chegaram a ultrapassar a arquitetura oficial”(Freyre: LXXII). A arquitetura, através da obra de Freyre, torna-se também uma lógica de significantes políticos familistas marcados na paisagem rural e urbana. Segundo ele, foi nas casas dos ex-barões que a República encontrou os melhores imóveis para fazer e expandir suas instalações burocráticas e não nos imóveis públicos herdados da monarquia (“arquitetura oficial”). Essas casas são um índice do “privatismo da organização patriarcal, a um tempo personalista e solidarista, dada a absorção do indivíduo pela família e [são índice também da] subordinação do Estado à pessoa nobre” (ao senhor patriarcal) (Freyre: LXXII).

Nos quatro primeiros séculos da história brasileira a família tutelar foi a maior força permanente, em torno da qual giraram os principais acontecimentos. O Estado, tanto quanto a religião, estiveram, nesse período, sob o domínio da pessoa ou da família economicamente poderosa, sendo tal personalismo também proveniente da formação patriarcal do brasileiro (Freyre: XC). Freyre pensa que o componente patriarcal do familismo tende a ter uma vida longa ou até eterna na vida política do brasileiro. “O patriarcal tende a prolongar-se no paternal, no paternalista, no culto sentimental ou místico do pai ainda identificado entre nós, com as imagens de homem protetor, de homem providencial, de homem necessário ao governo geral da sociedade” (Freyre: XCI). Não seria esta a imagem que grande parte dos políticos tenta sustentar no Brasil? Não foi se associando a esta imagem que governaram Getúlio Vargas e Lula, que se elegeu Collor de Mello ou com a qual a mídia “santificou” Tancredo Neves?

A posição patriarcal no familismo é da ordem de um lugar num discurso. Neste os lugares têm suas funções determinadas na relação com os demais lugares. O lugar patriarcal no discurso familial é o lugar do agente (S1) que se dirige a um outro (S2), lugar este que no discurso familial é representado pela mulher, filhos, “agregados”, empregados livres e escravos, pois são estes que detêm o saber que gera o gozo familial no domínio doméstico. Freyre chama o lugar do agente (S1) de “sistema patriarcal: [que é] o de dominação da família, da economia e da cultura pelo homem, às vezes sádico no exercício do poder e do mando, embora o poder e o domínio ele o exerça menos como indivíduo ou como sexo chamado “forte” ou “nobre” do que como representante do poderio familial” (Freyre: CII). Portanto, trata-se de um lugar no discurso, cuja função é determinada estruturalmente e independe das qualidades individuais de quem o ocupa. “Daí o fato de ter sido esse poder exercido às vezes por mulher: mulher cuja função era de patriarca e cuja forma de domínio era a patriarcal” (Freyre: CIII).

Quando o discurso familial é estendido à esfera pública, o lugar do outro (S2) passa a ser ocupado por novos representantes de saber que geram o gozo familial, quais sejam: o transeunte, o cidadão, o eleitor, o contribuinte, o baixo funcionário público a quem é imposta a “carteirada” etc. Todos estes detém um saber capaz de gerar gozo familial, que neste âmbito pode ser melhor caracterizado como gozo oligárquico, já que com a assunção do poder familial sobre o poder nacional o caráter familial do discurso e transmuta-se em caráter oligárquico. Embora, curiosamente, no senso comum jornalístico brasileiro o emprego da palavra oligarquia é majoritariamente associado somente ao domínio familial na política.

Recentemente uma trágica sequência de assassinatos, devidos às condições medievais do principal presídio do Maranhão, trouxe à público a extensão do gozo familial extraído pelo clã Sarney de seu domínio sobre a política maranhense. Na mesma época dos assassinatos estava previsto, como é praxe, através do erário estadual, o abastecimento das residências oficiais da governadora (palácio e casa de veraneio), por grandes quantidades de alimentos luxuosos: camarão, lagosta fresca, patinhas de caranguejo, foie gras, geleias francesas, castanhas, caviar e uísque escocês, somando um custo de 1,1 milhão de reais (O Estado de S. Paulo: 09/01/2014).

Tais benesses não contrastam apenas com a situação miserável dos presídios estaduais. “O custo total de R$ 1,1 milhão corresponde a 3.113 vezes a renda per capita média de quem mora no Maranhão, estado brasileiro com a pior média. Segundo o Atlas do Desenvolvimento Humano de 2013, do Pnud, os maranhenses têm renda individual média de R$ 360,34 - a média nacional é de R$793,87” (O Estado de S. Paulo: 09/01/2014).

Neste caso, é no lugar do agente do discurso familial dos Sarney, posição patriarcal freyreana, que está a governadora Roseana e no lugar daquele que detém o saber que produz o gozo familial, o lugar do outro (S2), estão os presidiários e demais cidadãos maranhenses, doadores de um “gozo a mais” para a família Sarney.

Nas entrevistas que concedeu para explicar a situação dos presídios e a compra das mercadorias citadas, alguns jornalistas trouxeram à baila o tema da oligarquia, inquerindo se o domínio familial dos Sarney na política maranhense podia ser classificado como tal. Segundo relatos jornalísticos, a questão irritou a governadora Roseana Sarney, que afirmou que “não existe oligarquia.” “Isso é ignorância ou má-fé.” “No Maranhão, assim como no Brasil, há democracia. Os governadores são eleitos.” “Não gosto de comentários maldosos”(http://noticias.uol.com.br: 12/01/2014). As supostas “ignorância ou má-fé” dos jornalistas não vêm do fato de associarem o domínio dos Sarney ao significante oligarquia, vêm de não fazerem o mesmo com vários outros grupos oligárquicos não familiares que dominam a política brasileira. Enquanto as oligarquias familiares tentam se esconder através do sistema eleitoral, as outras oligarquias ficam ocultas pelo senso comum jornalístico brasileiro, que vê oligarquia apenas no domínio político familiar.


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