por Almir Pereira
No debate
que se seguiu à publicação de meu artigo “Oligarquia brasileira”
(http://almirpereirablog.blogspot.com.br/2014/03/oligarquia-brasileira.html)
um de meus interlocutores apontou a necessidade de uma elucidação
mais minuciosa da diferença entre o clientelismo e a benevolência.
A separação mais direta entre estes dois significantes é a que se
refere à diferença da reciprocidade com o amor. Uma relação de
reciprocidade é aquela que estabelece uma mutualidade entre as
partes envolvidas. No amor a mutualidade não é uma condição de
existência, ou seja, uma relação baseada no amor é unilateral e,
mesmo que haja amor mútuo entre as partes envolvidas, a mutualidade
nunca pode ser uma condição à priori para a existência do amor. O
amor, inclusive, não surge se houver qualquer exigência de
contrapartida. Só há amor se houver gratuidade.
A
reciprocidade em torno da qual se estrutura o clientelismo, no
entanto, não se dá entre partes iguais. Ela ocorre entre um cliente
e um patrão, que intercambiam favores. O patrão fornece favores de
ordem material e proteção atualmente e deixa aberta a hipótese de
repetir isso no futuro. O cliente oferece em troca a sua lealdade e
submissão, seja política, militar ou social. “Do lado do cliente
a relação permite ter alguma segurança frente a necessidades
futuras; do lado do patrono, a habilidade de manipular a esperança
permitirá ampliar ao máximo possível a sua clientela com uma
quantidade limitada de benefícios” (Avelino Filho. 1994: 229).
Uma relação
de poder baseada no amor ao senhor por parte daqueles que a este
estão submetidos se estabelece em troca da benevolência do senhor.
Não que o senhor abra mão de suas prerrogativas de senhor, como a
de castigar os que a ele estão submetidos, quando estes não cumprem
alguma obrigação. A benevolência não é abrir mão das
prerrogativas de autoridade, mas oferecer estima e afeto mesmo
mantendo as prerrogativas do domínio, oferta que deve ser feita gratuitamente. Se não houver gratuidade os submetidos saberão que
se trata de uma oferta que exigirá deles alguma contrapartida, que se trata de um gesto
que busca sua lealdade, mas não conota amor.
O dicionário mais
importante entre os que tem a política como objeto, o de Bobbio,
curiosamente, não traz um verbete para o significante submissão nem
para o tema da “servidão voluntária”. Como não é nosso
objetivo aqui, apenas aproveitamos para deixar registrado este fato intrigante. Ao
inserirmos em um buscador na internet a expressão “benevolência
política”, nos deparamos com uma frase atribuída a Maurício de Nassau, chefe da
ocupação holandesa de Pernambuco no século XVII, que diz o seguinte: “os portugueses serão submissos se forem
tratados com cortesia e benevolência; sei por experiência que o
português é gente que faz mais caso da cortesia e do bom trato que
de bens”. Independente da veracidade da autoria ou do diagnóstico
da frase, esta faz uma ótima distinção do que significa dominar
pelo afeto em oposição ao domínio pela troca.
Em discurso de
comemoração dos 10 anos do programa Bolsa Família, a presidente
Dilma Roussef afirmou que esse programa varreu “as políticas
clientelistas centenárias do nosso País” e emendou que a
transferência de renda “significa poder de escolha, poder de
decisão sobre o que é melhor para si e para sua família”
(http://noticias.terra.com.br/
30/10/2013). A presidente quis deixar claro que o Bolsa Família não
é clientelista porque não exerce controle sobre seus beneficiários com base na política do
favor. Nas “políticas clientelistas
centenárias” a clientela ficava condiciona a como, a quando e a o que os
patrões políticos locais estivessem dispostos a oferecer a seus
clientes. Além de não ficarem devendo favor ao Governo Federal, os
beneficiários do Bolsa Família dispõem de um recurso permanente e
universal, uma cota mensal em dinheiro, garantindo a eles o “poder
de escolha” a que se referiu a presidente na busca de demonstrar o caráter benevolente desse programa.
O Bolsa Família é um
programa que altera o quadro onde o “clientelismo secular” atua, porque este “tende a se nutrir das situações de escassez, ao
manter grande número de pessoas dependentes de recursos escassos,
todos controlados e manipulados pela máquina política” (Avelino
Filho. 1994: 229). Como os beneficiários do Bolsa Família tem sua
escassez monetária diminuída, embora ainda muito longe de ser
eliminada, isso traz uma exigência de reciclagem das estratégias
usadas pelas oligarquias. Nesse sentido proliferaram os programas
municipais e estaduais que destinam somas mensais em dinheiro
para as famílias pobres, nos mesmos moldes do Bolsa Família.
Na fala da presidente a benevolência que caracteriza o Bolsa Família foi agenciada como uma forma de crítica do clientelismo, gesto que frisa
a negatividade deste para destacar a positividade daquela. Essa
operação traz a necessidade de um passo a mais na crítica política, para demonstrar que a benevolência não se situa num campo oposto ao do clientelismo, como
querem fazer crer os adeptos dela. Ela é parte integrante do sistema de
dominação oligárquica e uma forma mais meticulosa de poder, porque estabelece o domínio pela via da submissão desejada. Pela benevolência o
dominador faz uma demanda gratuita ao dominado, para conquistar a adesão voluntária deste à relação de dominação.
A descrição
da técnica afetiva de domínio escravocrata luso-brasileiro,
feita por Gilberto Freyre em sua obra, foi a inspiração de José
Paulo Bandeira para tornar o significante benevolência um
significante da leitura da política
(Silveira. 2014). A referência deste significante à cultura
política brasileira tornou possível uma crítica política do Bolsa
Família sem incorrer nos erros que outros analistas incorreram,
principalmente aqueles que tentaram fazer desse programa uma extensão
da política do favor. É justamente por ultrapassar a lógica
clientelista que o Bolsa Família se mostra tão impermeável à
crítica, mas também porque a cultura da benevolência tem um forte
enraizamento no inconsciente político, seja no Brasil seja no restante do mundo.
Mesmo os regimes socialistas, nascidos de uma aspiração
emancipacionista, ao converterem-se em regimes oligárquicos de
opressão política passaram a ser justificados por seus “benefícios
sociais”.
Bibliografia
AVELINO
FILHO, George. Clientelismo e política no Brasil, revisitando
velhos problemas. São Paulo,
revista Novos Estudos, CEBRAP, N.° 38, março 1994,
pp.225-240.
BOBBIO, Norberto &
outros. Dicionário de política. Brasília: Ed. Universidade
de Brasília, 1998.
SILVEIRA, José Paulo
Bandeira da. Oligarquia e política. Rio de Janeiro: edição
do autor, livro digital, Livraria Saraiva, 2014.
http://www.livrariasaraiva.com.br/produto/6919323
Terra, portal de notícias: http://noticias.terra.com.br/ , 30/10/2013.
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