domingo, 28 de setembro de 2014

Dilma, Getúlio e o Urstaat

por Almir Pereira


Um dia antes da final da Copa da FIFA, a polícia do Rio de Janeiro foi à residência de 26 pessoas com mandados de prisão,17 delas foram presas, 04 permaneceram foragidas. A ação teve a finalidade explícita de coibir protestos no dia seguinte, nas proximidades do estádio do Maracanã. Mesmo assim, algumas centenas de pessoas não se intimidaram. Na tarde da final da Copa se reuniram a dois quilomêtros do estádio com o objetivo de marchar até este em protesto. Antes da saída da passeata a polícia militar fez um cerco humano aos manifestantes, que foram impedidos de se deslocar e agredidos reiteradas vezes pelos policiais.

Na semana seguinte as redes sociais pulularam de denúncias contra o estado de exceção e o caráter político das prisões. O inquérito policial que embasou os mandados judiciais de prisão permaneceu inacessível aos advogados dos presos, em flagrante ilegalidade, enquanto as mídias divulgavam os trechos do mesmo inquérito. Depois da concessão de habeas corpus a uma parte dos presos e de uma nova decretação de prisão contra eles, em 23 de julho o TJ-RJ concedeu finalmente um novo habeas corpus a todos os acusados. Na concessão desta última medida o desembargador responsável por ela argumentou que a prisão temporária não se fazia necessária em vista do fato de que nem em caso de condenação os indiciados seriam presos, já que para as acusações mais graves contra eles as penas geralmente são convertidas em penas alternativas.

Para solicitar os mandados de prisão e assim impedir os acusados de protestar, a polícia se baseou na suposição de que estes tinham uma potencialidade criminosa. Isso significou transformar a paranoia em instituto jurídico. O que foi corroborado pelo judiciário quando este emitiu os mandados. Em termos jurídicos, portanto, tal ação não passou de um simulacro de legalidade para que seus agentes dispusessem do uso da força como arma política. Agentes policiais e judiciários se fizeram de instrumentos para uma ação violenta do Estado sem observar a legalidade.

O governo Dilma declarou seu apoio a tal ação através do ministro da justiça, José Eduardo Cardozo, que disse que as prisões foram um ato dentro da legalidade (estadao.com.br). Em coerência com a defesa de prisões arbitrárias de manifestantes o Governo Dilma recolocou o Exército no cenário político brasileiro, de onde estava afastado desde o final dos anos 1980, em virtude das atrocidades cometidas por seus agentes durante a ditadura civil-militar de 64 e também ao longo do governo despótico de José Sarney, a quem serviu como polícia sanguinária na greve dos metalúrgicos da CSN em 1988. Dilma atribuiu ao Exército a função de espionar potenciais manifestantes (estadao.com.br) . Já que a função do Exército é guerrear, esse ato é uma declaração de guerra do governo Dilma contra seus oponentes políticos e contra as multidões que protestam nas ruas?

Em 11 de agosto de 2014 a presidente Dilma Roussef tomou mais uma medida de mesma natureza que as ações governamentais acima. Ela sancionou a lei 13.022/2014, que dá poder de polícia e porte de armas às guardas municipais. Dado o privatismo dominante na cultura política brasileira, podemos dizer que agora todos os prefeitos disporão de uma milícia privada financiada com dinheiro público. Certamente que as guardas municipais serão usadas para subjugar todas as forças de oposição política nos municípios, mas especialmente para impedir ações de protesto dos cidadãos, como as ocupações de dezenas de câmaras municipais que ocorreram país afora a partir das jornadas de junho de 2013.   

Como reação à prisão dos manifestantes no Rio de Janeiro ganhou força um movimento contra o “estado de exceção”. A OAB, sindicatos e vários movimentos sociais se juntaram para denunciar as arbitrariedades cometidas pela polícia e pelo judiciário. Para muitas pessoas estas arbitrariedades configuram a vigência de um “estado de exceção” (Agamben) no Brasil, já que tais ações ignoram o “estado de direito”. Essa gestação de um Estado sem lei durante um período de vigência da democracia já aconteceu no Brasil. Durante o período democrático que se iniciou no mês de julho de 1934, Getúlio Vargas foi paulatinamente abolindo os controles legais sobre o exercício do poder de Estado até que no dia 21 de março de 1936 todos os direitos democráticos foram suprimidos.

A caracterização como estado de exceção da adoção de medidas despóticas pelo Governo Dilma ou do apoio deste governo à adoção de tais medidas pela polícia e pelo judiciário cria uma confusão teórica na elucidação desses fatos, já que estamos em plena vigência do estado de direito. Tal caracterização faz eco à teoria do estado de exceção de Giorgio Agamben, um dos maiores estudiosos dessa questão. Agamben explora a fronteira entre o direito e a política em sua abordagem do estado de exceção (Agamben). Para Agamben vivemos sob o domínio do “estado de exceção permanente”, pois nosso sistema jurídico-político está organizado em torno do estado de exceção, o que faz desse sistema “uma máquina letal” que “continuou a funcionar quase sem interrupção a partir da Primeira Guerra Mundial, por meio do fascismo e do nacional-socialismo, até nossos dias” (Agamben: 131). O que Agamben faz assim é implodir a própria noção de estado de direito, já que este para Agamben é na verdade uma derivação do estado de exceção que foi irremediavelmente dissolvida por este. Portanto o “retorno do estado de exceção efetivo em que vivemos ao estado de direito não é possível, pois o que está em questão agora são os próprios conceitos de “estado” e de “direito”(Agamben:131).

Com sua teoria do estado de exceção permanente Agamben descarta a oposição entre Estado com lei e Estado sem lei, ou seja, entre estado de direito e despotismo. De acordo com a teoria do estado de exceção permanente, se há Estado então há despotismo. O que isso parece representar é uma abolição da oposição real/simbólico. Como o real de todo Estado é uma captura de mais-gozar pelos aparelhos deste, que nenhuma forma simbólica inscrita no Estado consegue abolir, então todo Estado é uma forma de escravidão. Mas seriam desprezíveis as diversas formas simbólicas que o Estado pode adquirir? Para Marx o trabalho assalariado “é como se fosse uma escravidão”, mas ele não despreza a diferença entre o proletariado e os escravos, ou servos, e atribui um potencial revolucionário a tal diferença em favor do proletariado. Agamben parece insistir na utopia iluminista que esperava reduzir o real ao simbólico e assim suprimir a oposição entre eles.

Seja na sequência de fatos atuais relativos ao Governo Dilma descritos acima, seja nos fatos relativos à Democracia de 34, que ainda vamos apresentar, o que está em questão não é o “estado de exceção permanente” como julgam aqueles que seguem Agamben. O que Dilma começou a construir e que Getúlio levou a um desenvolvimento pleno, foi o Urstaat: a organização do uso da violência sem lei na forma da organização do uso da violência por leis despóticas. Esta forma é um simulacro da organização do uso da violência sem lei. Em ambos os casos, o de Dilma e o de Getúlio, o real da violência sem lei sendo usada de forma organizada sobre a população supôs a sua legitimação simbólica pelas máquinas de produção da opinião pública, antes pela imprensa, agora pela mídias, e a dissolução da inscrição simbólica do estado de direito na legislação, através de sucessivas alterações das leis democráticas. O real do uso da violência sem lei iniciou-se amparado na garantia simbólica vigente no artigo 113 da Constituição de 34, como veremos a seguir. A ampliação do real uso da violência sem lei também se deu com a remoção de garantias simbólicas estabelecidas na Constituição. Isso tudo sempre se apresenta articulado também pelo imaginário, que nos dois casos acima apresentou-se na forma de um suposto elemento político ameaçador.

Como Vargas conseguiu engendrar o Estado sem lei a partir do estado de direito? Como ele conseguiu suprimir os controles democráticos do poder estando o estado democrático em plena vigência? O Brasil já experimentou outras vezes a passagem da democracia para um Estado sem lei, mas em pelo menos duas delas, em 1930 e em 1964, a ruptura da legalidade se deu de forma abrupta através de um golpe de estado perpetrado pelo Exército em aliança com frações oligárquicas. De 1934 a 1936 a passagem da democracia ao Estado sem lei se deu de forma paulatina e por auto-dissolução, ou seja, as próprias instituições da democracia foram engendrando sua extinção.

A resposta a estas questões está ligada à emergência do “objeto totalitário”(Zizek: 67) na democracia de 34. Vargas incorporou como sua função a de “agente-instrumento ilegal da lei” (Zizek: 67) arrogando-se o papel de defensor da ordem contra a subversão. Para Getúlio a reintrodução da democracia no Brasil significava um obstáculo ao “necessário saneamento da vida financeira [e ao] equilíbrio orçamentário” do país. Para ele “só a manutenção da ditadura, livre de peias políticas poderia” (Neto. 2013: 201) garantir as condições necessárias para o enfrentamento de tais questões. Para o oligarca de formação positivista, admirador confesso do fascismo (Neto. 2012: 346), na política a ordem administrativa exigia a supressão da democracia.

Mas não era na defesa da ordem administrativa, financeira e orçamentária que Getúlio fundamentava seu papel de “agente-instrumento ilegal da lei”. Isso ele alicerçava arrogando-se defensor da ordem política e social contra a subversão. Para tanto ele tinha criado, em janeiro de 1933, a Delegacia Especial de Segurança Política e Social (DESPS), para o comando da qual nomeou o sinistro delegado Filinto Müller. Este tornou-se famoso por sua crueldade e truculência contra presos políticos, características reconhecidas e apoiadas por Getúlio. A escalada de prisões promovidas por Filinto Müller no comando da DESPS chegou ao ápice ao final de 1936, quando ela atingiu o número de 7.056 presos políticos, oficialmente sob sua custódia. Fora outras centenas de prisões extra-oficiais (Neto. 2013: 258).

Entre os presos a maioria eram trabalhadores ligados a sindicatos independentes do Governo. Também havia muitos jornalistas, além de militares, professores das faculdades de direito e de medicina do Rio de Janeiro, os escritores Graciliano Ramos e Jorge Amado, um senador, três deputados federais e o médico Pedro Ernesto, prefeito do Rio de janeiro durante a Democracia de 34. Todos acusados de subversão. A médica Nise da Silveira foi encarcerada por participar da União Feminina do Brasil e por possuir livros marxistas. O educador Anísio Teixeira perdeu o cargo de secretário municipal de educação e cultura sob a suspeita de ser ligado aos comunistas. As condições das prisões e o tratamento dispensados aos presos eram insalubres e brutais. As denúncias de tortura eram numerosas e frequentes. Nessa época o Brasil e a Alemanha nazista tinham relações internacionais amigáveis. A DESPS estabeleceu um intercâmbio com a GESTAPO (polícia política nazista) para troca de informações e mandou um de seus agentes fazer um estágio de um mês com o nazistas, com os quais ele aprendeu, inclusive, novas técnicas de tortura.

A escalada de arbitrariedades e de violência policial não se baseava somente em acusações genéricas de subversão. A subversão era o termo mais amplo dentro do qual a categoria comunismo era o rótulo mais frequente atribuído aos oponentes do Governo Vargas. Comunista também era a imagem mais demoníaca do imaginário político oficial. Na medida em que o ódio anti-comunista se espalhava pela sociedade, através de ações de propaganda do Governo ou dos jornais, crescia o apoio popular à repressão contra todos que a polícia política de Getúlio taxasse de comunista. A difusão e intensificação da paranoia anti-comunista teve papel fundamental para o governo Vargas ir ganhando um apoio crescente para suas propostas de supressão dos limites legais democráticos ao exercício do poder e ir gradualmente implantando um Estado despótico.

A própria Constituição de 1934 abria precedentes para a instauração de uma “caça à bruxas”, já que foi introduzido nela o conceito de “segurança nacional” e a autorização da expulsão de estrangeiros “perigosos à ordem pública”. A partir destes pontos Getúlio pode articular uma narrativa persecutória contra os que se opunham ao seu governo, acusando-os de atentarem contra a “segurança nacional”. Sendo que na definição de “ameaça à segurança nacional” podia caber qualquer coisa que o Governo julgasse útil à ampliação de seus poderes. Como o comunismo era uma ideologia internacional e internacionalista, estas características eram apresentadas pelo governo Vargas como sinais automáticos de “ameaça à segurança nacional”. Como uma parte considerável do movimento operário era de estrangeiros, a garantia legal de expulsão destes do país visava intimidá-los e afastá-los de quaisquer ações de protesto e reivindicação.

Já em 1934, a repressão policial ao movimento operário independente e ao jornalismo crítico do Governo começou a crescer. Em 07 de outubro aconteceu a “Batalha da Praça da Sé”, quando uma manifestação integralista foi dissolvida à força por militantes do movimento operário (comunistas, anarquistas e outros). Do confronto resultaram seis mortos e ao menos 50 feridos. A partir daí a repressão policial contra o movimento operário não parou de crescer. Os integralistas, no entanto, não eram incomodados, já que o chefe de polícia do Distrito Federal, Filinto Müller, simpatizava com sua ideologia e Getúlio os via como úteis para uma aliança tática. A perseguição ao sindicalismo independente também era uma reação a uma série de greves de trabalhadores que foram deflagradas no período. Como a nova constituição garantia ampla liberdade de reunião e de manifestação pública, a mobilização dos trabalhadores por suas reivindicações voltou a ganhar força.

Os jornais de oposição também passaram a ser atacados pela polícia com base em interpretação do artigo 113 da Constituição, que embora assegurasse a liberdade de expressão, proibia a “propaganda de guerra ou de processos violentos para subverter a ordem política ou social”(Neto. 2013: 199). Jornais foram fechados sob a acusação de incorrerem nessa infração. O Jornal do Povo foi o primeiro. Seu diretor foi preso arbitrariamente e só foi solto mediante protesto da ABI. Dias depois, o Barão de Itararé, apelido do jornalista Apparício Torelly, foi sequestrado, espancado e teve seus cabelos raspados. Era um recado intimidatório da polícia getulista contra o jornalismo.

Diante da brutalidade e das arbitrariedades da polícia política com os jornalistas e com o movimento operário e da tolerância de Vargas com as manifestações dos integralistas os ânimos daqueles que não se submetiam ao despotismo getulista era cada vez mais acirrado. Todos aqueles que acreditavam minimamente nas liberdades democráticas estavam indignados com o terror de Estado que se estava instalando contra os que se opunham ao Presidente. A polícia e os partidários de Getúlio, no entanto, reclamavam poderes ainda mais despóticos para reprimir as oposições. Getúlio e seus aliados argumentavam que os direitos democráticos eram um empecílio para o combate da ameaça comunista. Uma parte cada vez maior da mídia cerrava fileiras com esta narrativa. Desse contexto é que surgiu a proposta da “Lei Monstro”.

“Lei Monstro” é como a imprensa e as organizações operárias da época apelidaram a Lei de Segurança Nacional (LSN). A LSN criava uma “base legal ampliada para o funcionamento repressivo do sinistro supereu despótico getulista”(Silveira: 110). Isso se deu porque ela “tornava inafiançáveis uma ampla gama de 'crimes contra a ordem política e social', tornando praticamente impossível a existência de oposição política ao Governo Vargas. A LSN também autorizava a retirada de circulação de jornais, o confisco de livros e a apreensão de revistas. Quem fosse acusado com base na LSN não tinha direito à ampla defesa e era submetido a rito sumário” (Neto. 2013: 206). Em função da propaganda anti-comunista e da oposição das classes médias e dos empresários em relação às greves dos trabalhadores, estes setores sociais acolheram a LSN com louvor.

Em função do grande apoio dos setores sociais dominantes, a LSN foi aprovada no Congresso por ampla maioria. A primeira vítima da Lei de Segurança Nacional foi a ANL (Aliança Nacional Libertadora), uma frente ampla nacionalista, reformista e democrática formada por militares egressos do tenentismo, comunistas e nacionalistas não getulistas. A ANL chegou a ter quatrocentos núcleos espalhados pelo Brasil, mas depois de ampla campanha de grande parte dos jornais associando-a ao fantasma da conspiração comunista todos eles foram fechados pela polícia. O próprio governo ficou surpreso com a ausência de reação dos trabalhadores e de setores das classes médias que haviam participado com milhares de pessoas das mobilizações da ANL. A passividade popular demonstrada diante do fechamento da ANL foi mais um sinal da eficácia do terror getulista contra as oposições ao seu governo.

O único setor que supostamente ainda restava na oposição a Vargas estaria dentro das fileiras do Exército. Sob o comando de Luís Carlos Prestes, que havia retornado clandestinamente da União Soviética, o PCB apostava numa rebelião militar para derrubar Getúlio e alçar Prestes ao poder. A rebelião militar liderada por Prestes foi deflagrada em 27 de novembro de 1935 em duas unidades do Exército no Rio de Janeiro. Como o Governo tinha informantes entre os comunistas, as autoridades não foram surpreendidas e a rebelião foi sufocada em algumas horas. Somente algumas dezenas de militares aderiram ao movimento, contrariando a expectativa imaginária que pairava em torno da figura do líder da Coluna Prestes. Para os comunistas a mística em torno de Prestes atrairia grande número de adesões. Essa mística não se mostrou tão forte e a falta do elemento surpresa impediu a presença de Prestes nos quartéis para ativá-la. O movimento no Rio de Janeiro foi precipitado por duas rebeliões militares deflagradas em Natal e no Recife nos dias anteriores. Em reação a estas o Governo propôs e o Congresso aprovou, por ampla maioria, em 25 de novembro, o estado de sítio em todo o país.

Com o fracassado movimento liderado por Prestes e a decretação do estado de sítio, multiplicaram-se as prisões de militantes comunistas e de soldados e oficiais suspeitos de simpatizarem com a rebelião. Luís Carlos Prestes também acabou preso e todo o dispositivo clandestino do PCB que organizou a tentativa de golpe foi desmantelado e encarcerado. A força militar, estratégica e política dos comunistas mostrou-se quase insignificante enquanto uma capacidade real para a tomada do poder, mas passou a ser alardeada pelo Governo e pelos jornais como se tivesse proporções muito maiores. Isso facilitava a expansão do Estado sem lei pelas forças getulistas e transformava qualquer protesto em colaboração com o sinistro e gigantesco mostro comunista.

Getúlio tinha informações suficientes para abortar a rebelião comunista, mas preferiu deixá-la acontecer e servir-se dela como “o pedacinho de real”(Zizek: 156) que potencializaria exponencialmente a paranoia anti-comunista em que fundava-se a expansão do Urstaat. Na atualidade esta função de “pedacinho do real” é exercida pelos atos violentos niilistas promovidos por manifestantes. Outra forma de aumentar a paranoia anti-comunista e anti-oposição foi a circulação de calúnias contra os rebelados. Perpetuou-se nas forças armadas brasileiras a versão de que alguns dos 22 militares mortos, que permaneceram leais a Getúlio, teriam sido assassinados pelos rebelados enquanto dormiam nos quartéis. “Nos dezessete volumes que compõem o inquérito policial (…) não houve nenhuma menção a [este] fato”(Neto. 2013: 250). Com tal versão falaciosa os rebelados foram convertidos de insubordinados antigetulistas em facínoras assassinos de seus próprios companheiros de caserna.

O tentativa comunista de tomar o poder serviu para calar completamente as vozes que ainda se opunham ao Governo na imprensa. Esta foi ampliando sua conivência com as arbitrariedades do Governo não só por afinidade anti-comunista com este, mas também por conveniência financeira, já que o Governo Vargas era um importante financiador para a maioria dos órgãos noticiosos. Mas o fato símbolo da submissão jornalística ao Governo foi a oferta do título de sócio benemérito da ABI a Getúlio Vargas em agradecimento pela doação de verbas oficiais para a construção da sede própria daquela instituição, isto num momento em que a polícia política impunha-se a qualquer voz dissonante na imprensa. Na cerimônia em que recebeu tal título, Getúlio agradeceu a submissão dos jornalistas: “Quando se tornou necessário assegurar a integridade da pátria, não foram menos bravos os combatentes da pena, cerrando fileiras em torno do poder público, prestigiando-o, esclarecendo a opinião e repelindo com energia, a audácia dos executores do plano arquitetado e custeado por estrangeiros para transformar o Brasil em colônia de Moscou” (Neto. 2013: 253).

Com as derrotas de todas as forças políticas de oposição e o silenciamento total da imprensa, Getúlio solicitou ao Congresso a ampliação de seus poderes. Após negociação com os parlamentares, que incluiu o recebimento de dezenas deles em audiências individuais com o próprio Getúlio, a Câmara aprovou com mais de 70% dos votos, três emendas à Constituição que ampliavam os poderes discricionários do Presidente. A primeira “autorizava o presidente da República a equiparar a então 'comoção intestina grave' ao estado de guerra”, o que, quando posto em prática, suprimiria todas as garantias constitucionais. A segunda emenda “determinava a perda de patente e de posto, por decreto do Executivo, de qualquer oficial da ativa ou da reserva que houvesse praticado crime de subversão”. A terceira permitia a demissão sumária dos funcionários públicos acusados de crimes políticos (Neto. 2013: 254).

Em seguida à aprovação destas três emendas Getúlio restabeleceu o estado de sítio, que havia sido suspenso para o Congresso votá-las, e aprofundou-se a escalada de prisões a inimigos reais e imaginários do Governo. Isso, inclusive, demandou “a criação de cinco novas colônias penais agrícolas para dar conta do grande número de prisioneiros considerados 'perigosos socialmente” (Neto. 2013: 254). Paralela à generalizada perseguição policial Getúlio institucionalizou a paranoia como política de governo ao criar a Comissão Nacional de Repressão ao Comunismo, “que incentivava, em caráter oficial, as delações públicas de adversários políticos – ou mesmo de simples desafetos” (…). A simples denúncia originava a prisão imediata do suspeito. Não era a certeza da prática efetiva do crime, mas a mera possibilidade de um delito vir a ser praticado que determinava o encarceramento de um indivíduo” (Neto. 2013: 257). Tal comissão tinha, por isso, um caráter inquisitorial.

Em um tal clima, mesmo com as denúncias frequentes de tortura generalizada e maus tratos aos presos, só alguns parlamentares se arriscavam a usar o único canal público de protesto que restou: a tribuna do Congresso Nacional. Alguns juízes também não se furtavam ao seu papel e para desagrado da Comissão anticomunista de Getúlio concediam habeas corpus à presos que o Governo não desejava ver em liberdade. Incentivado por seus principais agentes de repressão a endurecer ainda mais a perseguição a seus oponentes, Getúlio, em 21 de março de 1936, encerrou a breve e autodissolvente democracia iniciada em julho de 34. Através da decretação do estado de guerra por Vargas todas as garantias constitucionais foram suprimidas, inclusive os direitos dos parlamentares. Com isso o Congresso foi invadido pela polícia e os parlamentares que vinham denunciando a tortura foram presos.

A extensão do Urstaat no governo de Dilma Roussef ainda é pequena quando comparada com aquela estabelecida por Getúlio em março de 1936. Do ponto de vista lógico, no entanto, as medidas despóticas de Dilma se equiparam plenamente ao sentido político da atuação de Vargas ao longo da Democracia de 34. No caso da atual presidente do Brasil ser reeleita, ela usará a força política conferida pelas urnas para seguir seu trabalho de produção do Estado sem lei no século XXI brasileiro. Todas as demonstrações da presidente nos últimos meses corroboram esta perspectiva. Assim a Democracia de 1988 aprofundará seu processo de autodissolução e transmutação em despotismo, assim como aconteceu com a Democracia de 34.


Bibliografia

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Neto, Lira. Getúlio: Dos anos de formação à conquista do poder (1882-1930). São Paulo, Companhia das Letras, 2012.

Neto, Lira. Getúlio: Do Governo Provisório à ditadura do Estado Novo (1930-1945). São Paulo, Companhia das Letras, 2013.

Silveira, J. P. Bandeira da. Oligarquia e política. Rio de Janeiro, Publique-se, 2014.

Zizek, Slavoj. Eles não sabem o que fazem. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1992.