domingo, 28 de setembro de 2014

Dilma, Getúlio e o Urstaat

por Almir Pereira


Um dia antes da final da Copa da FIFA, a polícia do Rio de Janeiro foi à residência de 26 pessoas com mandados de prisão,17 delas foram presas, 04 permaneceram foragidas. A ação teve a finalidade explícita de coibir protestos no dia seguinte, nas proximidades do estádio do Maracanã. Mesmo assim, algumas centenas de pessoas não se intimidaram. Na tarde da final da Copa se reuniram a dois quilomêtros do estádio com o objetivo de marchar até este em protesto. Antes da saída da passeata a polícia militar fez um cerco humano aos manifestantes, que foram impedidos de se deslocar e agredidos reiteradas vezes pelos policiais.

Na semana seguinte as redes sociais pulularam de denúncias contra o estado de exceção e o caráter político das prisões. O inquérito policial que embasou os mandados judiciais de prisão permaneceu inacessível aos advogados dos presos, em flagrante ilegalidade, enquanto as mídias divulgavam os trechos do mesmo inquérito. Depois da concessão de habeas corpus a uma parte dos presos e de uma nova decretação de prisão contra eles, em 23 de julho o TJ-RJ concedeu finalmente um novo habeas corpus a todos os acusados. Na concessão desta última medida o desembargador responsável por ela argumentou que a prisão temporária não se fazia necessária em vista do fato de que nem em caso de condenação os indiciados seriam presos, já que para as acusações mais graves contra eles as penas geralmente são convertidas em penas alternativas.

Para solicitar os mandados de prisão e assim impedir os acusados de protestar, a polícia se baseou na suposição de que estes tinham uma potencialidade criminosa. Isso significou transformar a paranoia em instituto jurídico. O que foi corroborado pelo judiciário quando este emitiu os mandados. Em termos jurídicos, portanto, tal ação não passou de um simulacro de legalidade para que seus agentes dispusessem do uso da força como arma política. Agentes policiais e judiciários se fizeram de instrumentos para uma ação violenta do Estado sem observar a legalidade.

O governo Dilma declarou seu apoio a tal ação através do ministro da justiça, José Eduardo Cardozo, que disse que as prisões foram um ato dentro da legalidade (estadao.com.br). Em coerência com a defesa de prisões arbitrárias de manifestantes o Governo Dilma recolocou o Exército no cenário político brasileiro, de onde estava afastado desde o final dos anos 1980, em virtude das atrocidades cometidas por seus agentes durante a ditadura civil-militar de 64 e também ao longo do governo despótico de José Sarney, a quem serviu como polícia sanguinária na greve dos metalúrgicos da CSN em 1988. Dilma atribuiu ao Exército a função de espionar potenciais manifestantes (estadao.com.br) . Já que a função do Exército é guerrear, esse ato é uma declaração de guerra do governo Dilma contra seus oponentes políticos e contra as multidões que protestam nas ruas?

Em 11 de agosto de 2014 a presidente Dilma Roussef tomou mais uma medida de mesma natureza que as ações governamentais acima. Ela sancionou a lei 13.022/2014, que dá poder de polícia e porte de armas às guardas municipais. Dado o privatismo dominante na cultura política brasileira, podemos dizer que agora todos os prefeitos disporão de uma milícia privada financiada com dinheiro público. Certamente que as guardas municipais serão usadas para subjugar todas as forças de oposição política nos municípios, mas especialmente para impedir ações de protesto dos cidadãos, como as ocupações de dezenas de câmaras municipais que ocorreram país afora a partir das jornadas de junho de 2013.   

Como reação à prisão dos manifestantes no Rio de Janeiro ganhou força um movimento contra o “estado de exceção”. A OAB, sindicatos e vários movimentos sociais se juntaram para denunciar as arbitrariedades cometidas pela polícia e pelo judiciário. Para muitas pessoas estas arbitrariedades configuram a vigência de um “estado de exceção” (Agamben) no Brasil, já que tais ações ignoram o “estado de direito”. Essa gestação de um Estado sem lei durante um período de vigência da democracia já aconteceu no Brasil. Durante o período democrático que se iniciou no mês de julho de 1934, Getúlio Vargas foi paulatinamente abolindo os controles legais sobre o exercício do poder de Estado até que no dia 21 de março de 1936 todos os direitos democráticos foram suprimidos.

A caracterização como estado de exceção da adoção de medidas despóticas pelo Governo Dilma ou do apoio deste governo à adoção de tais medidas pela polícia e pelo judiciário cria uma confusão teórica na elucidação desses fatos, já que estamos em plena vigência do estado de direito. Tal caracterização faz eco à teoria do estado de exceção de Giorgio Agamben, um dos maiores estudiosos dessa questão. Agamben explora a fronteira entre o direito e a política em sua abordagem do estado de exceção (Agamben). Para Agamben vivemos sob o domínio do “estado de exceção permanente”, pois nosso sistema jurídico-político está organizado em torno do estado de exceção, o que faz desse sistema “uma máquina letal” que “continuou a funcionar quase sem interrupção a partir da Primeira Guerra Mundial, por meio do fascismo e do nacional-socialismo, até nossos dias” (Agamben: 131). O que Agamben faz assim é implodir a própria noção de estado de direito, já que este para Agamben é na verdade uma derivação do estado de exceção que foi irremediavelmente dissolvida por este. Portanto o “retorno do estado de exceção efetivo em que vivemos ao estado de direito não é possível, pois o que está em questão agora são os próprios conceitos de “estado” e de “direito”(Agamben:131).

Com sua teoria do estado de exceção permanente Agamben descarta a oposição entre Estado com lei e Estado sem lei, ou seja, entre estado de direito e despotismo. De acordo com a teoria do estado de exceção permanente, se há Estado então há despotismo. O que isso parece representar é uma abolição da oposição real/simbólico. Como o real de todo Estado é uma captura de mais-gozar pelos aparelhos deste, que nenhuma forma simbólica inscrita no Estado consegue abolir, então todo Estado é uma forma de escravidão. Mas seriam desprezíveis as diversas formas simbólicas que o Estado pode adquirir? Para Marx o trabalho assalariado “é como se fosse uma escravidão”, mas ele não despreza a diferença entre o proletariado e os escravos, ou servos, e atribui um potencial revolucionário a tal diferença em favor do proletariado. Agamben parece insistir na utopia iluminista que esperava reduzir o real ao simbólico e assim suprimir a oposição entre eles.

Seja na sequência de fatos atuais relativos ao Governo Dilma descritos acima, seja nos fatos relativos à Democracia de 34, que ainda vamos apresentar, o que está em questão não é o “estado de exceção permanente” como julgam aqueles que seguem Agamben. O que Dilma começou a construir e que Getúlio levou a um desenvolvimento pleno, foi o Urstaat: a organização do uso da violência sem lei na forma da organização do uso da violência por leis despóticas. Esta forma é um simulacro da organização do uso da violência sem lei. Em ambos os casos, o de Dilma e o de Getúlio, o real da violência sem lei sendo usada de forma organizada sobre a população supôs a sua legitimação simbólica pelas máquinas de produção da opinião pública, antes pela imprensa, agora pela mídias, e a dissolução da inscrição simbólica do estado de direito na legislação, através de sucessivas alterações das leis democráticas. O real do uso da violência sem lei iniciou-se amparado na garantia simbólica vigente no artigo 113 da Constituição de 34, como veremos a seguir. A ampliação do real uso da violência sem lei também se deu com a remoção de garantias simbólicas estabelecidas na Constituição. Isso tudo sempre se apresenta articulado também pelo imaginário, que nos dois casos acima apresentou-se na forma de um suposto elemento político ameaçador.

Como Vargas conseguiu engendrar o Estado sem lei a partir do estado de direito? Como ele conseguiu suprimir os controles democráticos do poder estando o estado democrático em plena vigência? O Brasil já experimentou outras vezes a passagem da democracia para um Estado sem lei, mas em pelo menos duas delas, em 1930 e em 1964, a ruptura da legalidade se deu de forma abrupta através de um golpe de estado perpetrado pelo Exército em aliança com frações oligárquicas. De 1934 a 1936 a passagem da democracia ao Estado sem lei se deu de forma paulatina e por auto-dissolução, ou seja, as próprias instituições da democracia foram engendrando sua extinção.

A resposta a estas questões está ligada à emergência do “objeto totalitário”(Zizek: 67) na democracia de 34. Vargas incorporou como sua função a de “agente-instrumento ilegal da lei” (Zizek: 67) arrogando-se o papel de defensor da ordem contra a subversão. Para Getúlio a reintrodução da democracia no Brasil significava um obstáculo ao “necessário saneamento da vida financeira [e ao] equilíbrio orçamentário” do país. Para ele “só a manutenção da ditadura, livre de peias políticas poderia” (Neto. 2013: 201) garantir as condições necessárias para o enfrentamento de tais questões. Para o oligarca de formação positivista, admirador confesso do fascismo (Neto. 2012: 346), na política a ordem administrativa exigia a supressão da democracia.

Mas não era na defesa da ordem administrativa, financeira e orçamentária que Getúlio fundamentava seu papel de “agente-instrumento ilegal da lei”. Isso ele alicerçava arrogando-se defensor da ordem política e social contra a subversão. Para tanto ele tinha criado, em janeiro de 1933, a Delegacia Especial de Segurança Política e Social (DESPS), para o comando da qual nomeou o sinistro delegado Filinto Müller. Este tornou-se famoso por sua crueldade e truculência contra presos políticos, características reconhecidas e apoiadas por Getúlio. A escalada de prisões promovidas por Filinto Müller no comando da DESPS chegou ao ápice ao final de 1936, quando ela atingiu o número de 7.056 presos políticos, oficialmente sob sua custódia. Fora outras centenas de prisões extra-oficiais (Neto. 2013: 258).

Entre os presos a maioria eram trabalhadores ligados a sindicatos independentes do Governo. Também havia muitos jornalistas, além de militares, professores das faculdades de direito e de medicina do Rio de Janeiro, os escritores Graciliano Ramos e Jorge Amado, um senador, três deputados federais e o médico Pedro Ernesto, prefeito do Rio de janeiro durante a Democracia de 34. Todos acusados de subversão. A médica Nise da Silveira foi encarcerada por participar da União Feminina do Brasil e por possuir livros marxistas. O educador Anísio Teixeira perdeu o cargo de secretário municipal de educação e cultura sob a suspeita de ser ligado aos comunistas. As condições das prisões e o tratamento dispensados aos presos eram insalubres e brutais. As denúncias de tortura eram numerosas e frequentes. Nessa época o Brasil e a Alemanha nazista tinham relações internacionais amigáveis. A DESPS estabeleceu um intercâmbio com a GESTAPO (polícia política nazista) para troca de informações e mandou um de seus agentes fazer um estágio de um mês com o nazistas, com os quais ele aprendeu, inclusive, novas técnicas de tortura.

A escalada de arbitrariedades e de violência policial não se baseava somente em acusações genéricas de subversão. A subversão era o termo mais amplo dentro do qual a categoria comunismo era o rótulo mais frequente atribuído aos oponentes do Governo Vargas. Comunista também era a imagem mais demoníaca do imaginário político oficial. Na medida em que o ódio anti-comunista se espalhava pela sociedade, através de ações de propaganda do Governo ou dos jornais, crescia o apoio popular à repressão contra todos que a polícia política de Getúlio taxasse de comunista. A difusão e intensificação da paranoia anti-comunista teve papel fundamental para o governo Vargas ir ganhando um apoio crescente para suas propostas de supressão dos limites legais democráticos ao exercício do poder e ir gradualmente implantando um Estado despótico.

A própria Constituição de 1934 abria precedentes para a instauração de uma “caça à bruxas”, já que foi introduzido nela o conceito de “segurança nacional” e a autorização da expulsão de estrangeiros “perigosos à ordem pública”. A partir destes pontos Getúlio pode articular uma narrativa persecutória contra os que se opunham ao seu governo, acusando-os de atentarem contra a “segurança nacional”. Sendo que na definição de “ameaça à segurança nacional” podia caber qualquer coisa que o Governo julgasse útil à ampliação de seus poderes. Como o comunismo era uma ideologia internacional e internacionalista, estas características eram apresentadas pelo governo Vargas como sinais automáticos de “ameaça à segurança nacional”. Como uma parte considerável do movimento operário era de estrangeiros, a garantia legal de expulsão destes do país visava intimidá-los e afastá-los de quaisquer ações de protesto e reivindicação.

Já em 1934, a repressão policial ao movimento operário independente e ao jornalismo crítico do Governo começou a crescer. Em 07 de outubro aconteceu a “Batalha da Praça da Sé”, quando uma manifestação integralista foi dissolvida à força por militantes do movimento operário (comunistas, anarquistas e outros). Do confronto resultaram seis mortos e ao menos 50 feridos. A partir daí a repressão policial contra o movimento operário não parou de crescer. Os integralistas, no entanto, não eram incomodados, já que o chefe de polícia do Distrito Federal, Filinto Müller, simpatizava com sua ideologia e Getúlio os via como úteis para uma aliança tática. A perseguição ao sindicalismo independente também era uma reação a uma série de greves de trabalhadores que foram deflagradas no período. Como a nova constituição garantia ampla liberdade de reunião e de manifestação pública, a mobilização dos trabalhadores por suas reivindicações voltou a ganhar força.

Os jornais de oposição também passaram a ser atacados pela polícia com base em interpretação do artigo 113 da Constituição, que embora assegurasse a liberdade de expressão, proibia a “propaganda de guerra ou de processos violentos para subverter a ordem política ou social”(Neto. 2013: 199). Jornais foram fechados sob a acusação de incorrerem nessa infração. O Jornal do Povo foi o primeiro. Seu diretor foi preso arbitrariamente e só foi solto mediante protesto da ABI. Dias depois, o Barão de Itararé, apelido do jornalista Apparício Torelly, foi sequestrado, espancado e teve seus cabelos raspados. Era um recado intimidatório da polícia getulista contra o jornalismo.

Diante da brutalidade e das arbitrariedades da polícia política com os jornalistas e com o movimento operário e da tolerância de Vargas com as manifestações dos integralistas os ânimos daqueles que não se submetiam ao despotismo getulista era cada vez mais acirrado. Todos aqueles que acreditavam minimamente nas liberdades democráticas estavam indignados com o terror de Estado que se estava instalando contra os que se opunham ao Presidente. A polícia e os partidários de Getúlio, no entanto, reclamavam poderes ainda mais despóticos para reprimir as oposições. Getúlio e seus aliados argumentavam que os direitos democráticos eram um empecílio para o combate da ameaça comunista. Uma parte cada vez maior da mídia cerrava fileiras com esta narrativa. Desse contexto é que surgiu a proposta da “Lei Monstro”.

“Lei Monstro” é como a imprensa e as organizações operárias da época apelidaram a Lei de Segurança Nacional (LSN). A LSN criava uma “base legal ampliada para o funcionamento repressivo do sinistro supereu despótico getulista”(Silveira: 110). Isso se deu porque ela “tornava inafiançáveis uma ampla gama de 'crimes contra a ordem política e social', tornando praticamente impossível a existência de oposição política ao Governo Vargas. A LSN também autorizava a retirada de circulação de jornais, o confisco de livros e a apreensão de revistas. Quem fosse acusado com base na LSN não tinha direito à ampla defesa e era submetido a rito sumário” (Neto. 2013: 206). Em função da propaganda anti-comunista e da oposição das classes médias e dos empresários em relação às greves dos trabalhadores, estes setores sociais acolheram a LSN com louvor.

Em função do grande apoio dos setores sociais dominantes, a LSN foi aprovada no Congresso por ampla maioria. A primeira vítima da Lei de Segurança Nacional foi a ANL (Aliança Nacional Libertadora), uma frente ampla nacionalista, reformista e democrática formada por militares egressos do tenentismo, comunistas e nacionalistas não getulistas. A ANL chegou a ter quatrocentos núcleos espalhados pelo Brasil, mas depois de ampla campanha de grande parte dos jornais associando-a ao fantasma da conspiração comunista todos eles foram fechados pela polícia. O próprio governo ficou surpreso com a ausência de reação dos trabalhadores e de setores das classes médias que haviam participado com milhares de pessoas das mobilizações da ANL. A passividade popular demonstrada diante do fechamento da ANL foi mais um sinal da eficácia do terror getulista contra as oposições ao seu governo.

O único setor que supostamente ainda restava na oposição a Vargas estaria dentro das fileiras do Exército. Sob o comando de Luís Carlos Prestes, que havia retornado clandestinamente da União Soviética, o PCB apostava numa rebelião militar para derrubar Getúlio e alçar Prestes ao poder. A rebelião militar liderada por Prestes foi deflagrada em 27 de novembro de 1935 em duas unidades do Exército no Rio de Janeiro. Como o Governo tinha informantes entre os comunistas, as autoridades não foram surpreendidas e a rebelião foi sufocada em algumas horas. Somente algumas dezenas de militares aderiram ao movimento, contrariando a expectativa imaginária que pairava em torno da figura do líder da Coluna Prestes. Para os comunistas a mística em torno de Prestes atrairia grande número de adesões. Essa mística não se mostrou tão forte e a falta do elemento surpresa impediu a presença de Prestes nos quartéis para ativá-la. O movimento no Rio de Janeiro foi precipitado por duas rebeliões militares deflagradas em Natal e no Recife nos dias anteriores. Em reação a estas o Governo propôs e o Congresso aprovou, por ampla maioria, em 25 de novembro, o estado de sítio em todo o país.

Com o fracassado movimento liderado por Prestes e a decretação do estado de sítio, multiplicaram-se as prisões de militantes comunistas e de soldados e oficiais suspeitos de simpatizarem com a rebelião. Luís Carlos Prestes também acabou preso e todo o dispositivo clandestino do PCB que organizou a tentativa de golpe foi desmantelado e encarcerado. A força militar, estratégica e política dos comunistas mostrou-se quase insignificante enquanto uma capacidade real para a tomada do poder, mas passou a ser alardeada pelo Governo e pelos jornais como se tivesse proporções muito maiores. Isso facilitava a expansão do Estado sem lei pelas forças getulistas e transformava qualquer protesto em colaboração com o sinistro e gigantesco mostro comunista.

Getúlio tinha informações suficientes para abortar a rebelião comunista, mas preferiu deixá-la acontecer e servir-se dela como “o pedacinho de real”(Zizek: 156) que potencializaria exponencialmente a paranoia anti-comunista em que fundava-se a expansão do Urstaat. Na atualidade esta função de “pedacinho do real” é exercida pelos atos violentos niilistas promovidos por manifestantes. Outra forma de aumentar a paranoia anti-comunista e anti-oposição foi a circulação de calúnias contra os rebelados. Perpetuou-se nas forças armadas brasileiras a versão de que alguns dos 22 militares mortos, que permaneceram leais a Getúlio, teriam sido assassinados pelos rebelados enquanto dormiam nos quartéis. “Nos dezessete volumes que compõem o inquérito policial (…) não houve nenhuma menção a [este] fato”(Neto. 2013: 250). Com tal versão falaciosa os rebelados foram convertidos de insubordinados antigetulistas em facínoras assassinos de seus próprios companheiros de caserna.

O tentativa comunista de tomar o poder serviu para calar completamente as vozes que ainda se opunham ao Governo na imprensa. Esta foi ampliando sua conivência com as arbitrariedades do Governo não só por afinidade anti-comunista com este, mas também por conveniência financeira, já que o Governo Vargas era um importante financiador para a maioria dos órgãos noticiosos. Mas o fato símbolo da submissão jornalística ao Governo foi a oferta do título de sócio benemérito da ABI a Getúlio Vargas em agradecimento pela doação de verbas oficiais para a construção da sede própria daquela instituição, isto num momento em que a polícia política impunha-se a qualquer voz dissonante na imprensa. Na cerimônia em que recebeu tal título, Getúlio agradeceu a submissão dos jornalistas: “Quando se tornou necessário assegurar a integridade da pátria, não foram menos bravos os combatentes da pena, cerrando fileiras em torno do poder público, prestigiando-o, esclarecendo a opinião e repelindo com energia, a audácia dos executores do plano arquitetado e custeado por estrangeiros para transformar o Brasil em colônia de Moscou” (Neto. 2013: 253).

Com as derrotas de todas as forças políticas de oposição e o silenciamento total da imprensa, Getúlio solicitou ao Congresso a ampliação de seus poderes. Após negociação com os parlamentares, que incluiu o recebimento de dezenas deles em audiências individuais com o próprio Getúlio, a Câmara aprovou com mais de 70% dos votos, três emendas à Constituição que ampliavam os poderes discricionários do Presidente. A primeira “autorizava o presidente da República a equiparar a então 'comoção intestina grave' ao estado de guerra”, o que, quando posto em prática, suprimiria todas as garantias constitucionais. A segunda emenda “determinava a perda de patente e de posto, por decreto do Executivo, de qualquer oficial da ativa ou da reserva que houvesse praticado crime de subversão”. A terceira permitia a demissão sumária dos funcionários públicos acusados de crimes políticos (Neto. 2013: 254).

Em seguida à aprovação destas três emendas Getúlio restabeleceu o estado de sítio, que havia sido suspenso para o Congresso votá-las, e aprofundou-se a escalada de prisões a inimigos reais e imaginários do Governo. Isso, inclusive, demandou “a criação de cinco novas colônias penais agrícolas para dar conta do grande número de prisioneiros considerados 'perigosos socialmente” (Neto. 2013: 254). Paralela à generalizada perseguição policial Getúlio institucionalizou a paranoia como política de governo ao criar a Comissão Nacional de Repressão ao Comunismo, “que incentivava, em caráter oficial, as delações públicas de adversários políticos – ou mesmo de simples desafetos” (…). A simples denúncia originava a prisão imediata do suspeito. Não era a certeza da prática efetiva do crime, mas a mera possibilidade de um delito vir a ser praticado que determinava o encarceramento de um indivíduo” (Neto. 2013: 257). Tal comissão tinha, por isso, um caráter inquisitorial.

Em um tal clima, mesmo com as denúncias frequentes de tortura generalizada e maus tratos aos presos, só alguns parlamentares se arriscavam a usar o único canal público de protesto que restou: a tribuna do Congresso Nacional. Alguns juízes também não se furtavam ao seu papel e para desagrado da Comissão anticomunista de Getúlio concediam habeas corpus à presos que o Governo não desejava ver em liberdade. Incentivado por seus principais agentes de repressão a endurecer ainda mais a perseguição a seus oponentes, Getúlio, em 21 de março de 1936, encerrou a breve e autodissolvente democracia iniciada em julho de 34. Através da decretação do estado de guerra por Vargas todas as garantias constitucionais foram suprimidas, inclusive os direitos dos parlamentares. Com isso o Congresso foi invadido pela polícia e os parlamentares que vinham denunciando a tortura foram presos.

A extensão do Urstaat no governo de Dilma Roussef ainda é pequena quando comparada com aquela estabelecida por Getúlio em março de 1936. Do ponto de vista lógico, no entanto, as medidas despóticas de Dilma se equiparam plenamente ao sentido político da atuação de Vargas ao longo da Democracia de 34. No caso da atual presidente do Brasil ser reeleita, ela usará a força política conferida pelas urnas para seguir seu trabalho de produção do Estado sem lei no século XXI brasileiro. Todas as demonstrações da presidente nos últimos meses corroboram esta perspectiva. Assim a Democracia de 1988 aprofundará seu processo de autodissolução e transmutação em despotismo, assim como aconteceu com a Democracia de 34.


Bibliografia

Amaben, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo, Boitempo, 2004.

Neto, Lira. Getúlio: Dos anos de formação à conquista do poder (1882-1930). São Paulo, Companhia das Letras, 2012.

Neto, Lira. Getúlio: Do Governo Provisório à ditadura do Estado Novo (1930-1945). São Paulo, Companhia das Letras, 2013.

Silveira, J. P. Bandeira da. Oligarquia e política. Rio de Janeiro, Publique-se, 2014.

Zizek, Slavoj. Eles não sabem o que fazem. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1992.



sexta-feira, 25 de julho de 2014

Produção do contemporâneo, resenha do livro

por Almir Pereira

Uma parte considerável dos textos sobre a política atual que circulam como literatura especializada, jornalismo ou comentários em redes sociais é de uma repetição profundamente entediante. Seja na reprodução dos cânones acadêmicos ou nos comentários simplórios do senso comum, é imensa a proporção de explicações estéreis no sentido de jogar luz sobre o que está acontecendo. As pessoas que já intuíram que a atualidade política representa mudanças profundas e inéditas sentem tais explicações como uma força de repressão intelectual à sua intuição.

Quem acompanha o fluxo dos significantes políticos nas redes sociais tem notado o quanto a internet se tornou uma Babel de idéias políticas, onde significantes teoricamente opostos ou excludentes passaram a ser misturados. Tal confusão revela muito mais do que ignorância teórica por parte dos internautas, revela que na superfície das práticas políticas a formalidade das idéias consagradas não tem mais eficácia simbólica. O imaginário padrão tem sido cada vez menos efetivo na oferta de significantes capazes de simbolizar o real fugidio da política. Também o simbólico tem se mostrado fugidio em sua relação com o imaginário político. Daí as conversas sobre política nas redes sociais serem cacofônicas e muito raivosas.

O leitor que busca contribuições efetivas do pensamento político atual tornou-se um garimpeiro em jazidas escassas. Sua paciência e atenção tornaram-se os principais parâmetros para encontrar algo de valor numa imensidão de explicações repetitivas e convencionais, que se apresentam como sendo argumentos revolucionários capazes de dar conta das reviravoltas políticas que nos deixam perplexos a cada dia. A predominância dos profetas de fatos passados dificulta muito o reconhecimento dos verdadeiros poetas do presente.

Os interessados na reflexão fértil da política de hoje em dia devem ler Produção do contemporâneo, livro de José Paulo Bandeira, lançado recentemente pelo selo “Publique-se”, da Livraria Saraiva. Trata-se de um livro de ensaios, sendo que o maior deles ocupa quase a metade do livro e apresenta uma visão panorâmica dos fenômenos e objetos que caracterizam a política na atualidade. Os outros ensaios se dedicam a temas mais específicos, mas não sem localizá-los no encadeamento lógico que produz a contemporaneidade como uma totalidade.

Produção do contemporâneo mostra como estão colocados na política brasileira vários fenômenos atuais que não se restringem ao Brasil. Fenômenos políticos universais que formam um encadeamento mundial, mas que em cada país, região ou continente, particularizam-se nos traços específicos de cada contexto. Por isso também é um livro sobre a especificidade da cultura política brasileira e sobre como esta tem redefinido o sentido dos significantes políticos da cadeia política mundial. Redefinição feita a partir das práticas políticas seculares no Brasil.

Também podemos dizer que se trata de uma obra sem restrições intelectuais, pois trafega por uma enorme extensão de campos teóricos produtores de conhecimento acerca da política. O livro vai da filosofia política clássica de Aristóteles até a psicanálise Lacaniana, passando pelos mestres das ciências sociais brasileiras. Um exemplo relevante da fertilidade desse método é o uso estratégico do Urstaat, originário do pensamento de Nietzsche, autor que geralmente não é associado à reflexão da política. 

O Urstaat é uma regressão ao Estado originário que tem se generalizado nas diversas realidades nacionais da atualidade. Regressão diante da qual o pensamento especializado tem repetido uma terminologia moderna impotente, como mostra a proliferação de termos como Estado de exceção e ditadura. O despertar do Urstaat tem se tornado uma praxe, por isso não pode ser classificado como “exceção”. Como esse despertar não dissolve formalmente as instituições liberais, a classificação desse fenômeno como sendo a implantação de uma ditadura não demonstra consistência. O Urstaat simboliza com eficácia uma lacuna do pensamento político e joga luz sobre uma das maiores sombras políticas do contemporâneo.

A política na atualidade caracteriza-se pelo poder titânico das operações de amoldamento da vida segundo a perversão dominante e pela reação das multidões rebeldes que não aceitam mais as crescentes privações a que são submetidas por tais operações. Esta é a principal tese do livro, que mostra o quanto vivemos numa era de ultrapassagem de paradigmas políticos seculares, que está inviabilizando o pensamento convencional. Por isso, trata-se de um livro-convite à ruptura com este tipo de pensamento político. Não porque proponha algum vanguardismo, mas porque simboliza esse processo novo que está remodelando as formas políticas conhecidas e, assim, dissolvendo a eficácia do pensamento político vigente.


Um dos problemas contemporâneos a ser resolvido é o problema do governo possível. A tradição revolucionária moderna nos garantiu que encontraríamos a forma simbólica do real, e o que adveio disso foi a tragédia stalinista, forma acaba da negação do incosciente político. Agora sabemos que qualquer tentativa de abolir o inconsciente político nos guia em direção ao pior. Uma abordagem fértil do governo possível é elaborada em Produção do contemporâneo. “Como objeto socialmente valorizado, o governo possível seria o efeito da sublimação das pulsões do inconsciente político que levam o luto e a desolação para a política”. Para tanto a política deve ser operada como lógica do significante amizade. A amizade é um significante do campo da ética. A amizade imperfeita é a ética da cidade, “distinta da amizade perfeita entre muitas pessoas”(p.54), esta oriunda do imaginário aristotélico. A amizade na multidão, inclusive na multidão virtual, abre para a possibilidade de reinvenção do espaço público no século XXI.

segunda-feira, 23 de junho de 2014

Política Nacional de Participação Social

por Almir Pereira

Em 23 de maio de 2014 a presidente Dilma Roussef instituiu a Política Nacional de Participação Social (PNPS), através do decreto 8.243. Trate-se de uma lei que organiza a relação entre ministérios e outras repartições federais com as diversas instâncias de participação social, como os conselhos permanentes de políticas públicas, as periódicas conferências nacionais temáticas e as frequentes audiências públicas, entre outras. À primeira vista seria apenas uma formalização de mecanismos institucionais já existentes no Estado brasileiro e um incentivo para que órgãos públicos que ainda não os adotam passarem a fazê-lo. Foi esta a perspectiva que membros do governo adotaram para defender a PNPS diante de amplas reações contrárias ao decreto por parte de juristas, representantes políticos e profissionais das mídias.

Há nos acontecimentos políticos atuais uma realidade inegável: o sistema representativo moderno está mergulhado numa crise secular. Tal crise tem extensão mundial, mas em cada situação nacional ela aparece de uma forma particular. No Brasil o domínio dos partidos oligárquicos sobre a República Democrática é a causa principal do esvaziamento de representação desta e as jornadas de junho são o sintoma mais explícito disso. A tentativa de cooptação das massas no junho de 2013 pela presidente Roussef com a proposta de constituinte exclusiva para a reforma política foi uma declaração do esgotamento político da Constituição de 1988. A PNPS é mais um ato no roteiro de captura da energia política liberada pelas multidões de junho, por parte do Governo.

A representação trágica da política brasileira pelas multidões indignadas e democráticas acendeu a luz amarela no painel de controle do dispositivo oligárquico nacional. A fração política que gira em torno do poder Executivo, capitaneada por Roussef, pretende desacelerar a ação multitudinária e intensificar a remodelação dos aparelhos de Estado produzindo “o povo participativo para além do povo-nação”. Tal movimento já foi classificado pelos analistas políticos como sendo da mesma classe do bolivarianismo, do golpismo e do bolchevismo. A classificação da PNPS junto destes significantes teria apenas um sentido retórico? Terá Roussef dado um passo na remodelação do Estado brasileiro em um sentido anti-democrático?

A PNPS criou um antagonismo explícito entre o Executivo e o Legislativo. Este reagiu de forma contundente contra o decreto presidencial 8.243, argumentando principalmente a usurpação de seus poderes. O Executivo, no entanto, não mostrou-se interessado em ceder como se deu no caso da proposta de uma constituinte para a reforma política. Parece que na proximidade das eleições para Presidente da República a presidente Roussef quer marcar uma linha divisória entre o Executivo e o Congresso Nacional em relação à forma de abordar as multidões de junho. Vale lembrar que em 2013 as multidões se mostraram mais coesas na repulsa do Legislativo, que era mais identificado como um reduto oligárquico, do que no repúdio ao poder Executivo.

O ministro Gilberto Carvalho, em entrevista ao Jornal O Globo em 16 de junho (http://oglobo.globo.com/brasil/gilberto-carvalho-dilma-nao-vai-alterar-projeto-sobre-politica-nacional-de-participacao-social-12874781) apresentou a disposição de confronto do Executivo. Ele disse que o Governo não pretende recuar do decreto 8.243 tranformando-o em projeto de lei a ser remetido ao Congresso Nacional. Segundo Carvalho o Governo “prefere ser derrotado. E aí o Congresso vai ter que explicar para a sociedade porque derrotou uma proposta em que nada o ofende. Se o Congresso aceitar, gostaríamos de fazer audiência pública para discutir a natureza e o amadurecimento da participação da sociedade.” A argumentação do ministro explicita o quanto o governo quer diferenciar-se do Congresso quando se trata de abordar as massas que protestam nas ruas.

Ainda na entrevista citada acima, o ministro acenou ao Congresso com os mesmos fantasmas com que as mídias apavoram seus expectadores: os jovens mascarados vestidos de preto que quebram vidraças durante manifestações. Para Carvalho “um governo democrático tem que estar aberto para esse debate, se não vai gerando processos muito mais complexos, como os black blocs e outras formas que criam enormes problemas para a sociedade. Sim, daí a nossa inquietude de abrir para a participação das redes sociais nessas esferas. O lamentável é uma minoria que argumenta que a atuação da polícia na periferia justifica a violência nesses atos. Dizem que não agem contra as pessoas, mas contra os bancos. Mas também acabam destruindo lixeiras e placas de trânsito.”

Nessa linha de argumentação a invenção do “povo-participativo” pela presidente seria uma forma de transformar o niilismo juvenil em uma potência democrática. O que a fala do ministro Carvalho aponta é um movimento do Executivo para se apropriar da produção de sentido acerca do que representam os protestos de rua a partir do junho de 2013. A PNPS é uma “forma branda do bolivarianismo”, que abre uma fenda entre as massas nas ruas e a população retirando o apoio desta àquelas e transferindo tal apoio ao poder Executivo através dos conselhos de participação social. O Governo, através da PNPS, está reivindicando-se como um tradutor dos anseios das massas.

No último dia 15 de junho o Jornal Folha de São Paulo publicou uma matéria (http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/06/1470598-seis-perguntas-sobre-os-conselhos-populares.shtml) defendendo a posição do Governo e contestando os críticos da PNPS que teriam classificado a PNPS como 'golpista', 'bolivariano' e até 'bolchevique' sem razões para tanto. Nesta matéria o decreto é apresentado como um dispositivo burocrático neutro propositor de procedimentos já existentes e sem nenhuma novidade de caráter político. Essa neutralidade foi contestada no dia seguinte por um dos colunistas da revista Veja, que publicou um artigo para explicar detalhadamente como a matéria do jornal desconsidera os reais reflexos da PNPS

Este último artigo considera que a PNPS tem por objetivo minar o sistema representativo na mesma linha de ação dos governos de Hugo Cháves. Um dos argumentos levantados a esse respeito é a influência que a base política e social ligada ao Governo tem sobre vários desses conselhos, especialmente os da área social, ou seja, nenhum grupo político terá possibilidades maiores de influenciar tais conselhos que aqueles que compõem a base do Governo. No mesmo artigo é apontada também a falta de transparência em que funcionam tais conselhos e o quanto são mais prestigiados justamente os conselhos que têm maiores afinidades com o Governo.

No último dia 13 de junho um grupo de juristas e professores universitários divulgou um manifesto em favor da Política Nacional de Participação Social. Tal manifesto encerra-se dizendo que “o decreto [da PNPS] não possui inspiração antidemocrática, pois não submete as instâncias de participação, os movimentos sociais ou o cidadão a qualquer forma de controle por parte do Estado Brasileiro; ao contrário, aprofunda as práticas democráticas e amplia as possibilidades de fiscalização do Estado pelo povo.” O manifesto do qual faz parte este trecho já repercutiu e recebeu apoio de outros grupos organizados que possuem afinidades ideológicas com o Governo. Também algumas lideranças do PT fazem a defesa do decreto com a mesma linha de argumentação: “Como se pode falar em ditadura quando se fala em ampliar o controle da sociedade sobre o governo?” Interroga o ministro Carvalho na entrevista referida acima.

Até lideranças de oposição, mas com alguma afinidade ideológica com o governo, se deixaram levar pela ilusão de que em essência o decreto da PNPS é benéfico. Já manifestaram-se defendendo esta linha de pensamento o presidenciável Eduardo Campos, sua vice, Marina Silva, e o líder do partido Rede Sustentabilidade, Basileu Margarido. Margarido pontuou: “Agora isso gera algum desconforto e alguma desconfiança de que essa seja uma atitude mais eleitoreira do que realmente um aperfeiçoamento das instituições públicas e da democracia.” Será que nenhum deles se atentou para o fato de que se trata de uma busca de capturar o apoio popular às jornadas de junho? Os setores políticos de oposição, mas sem afinidade ideológica com o Governo, perceberam e denunciaram este anseio de apropriação, pelo Governo, do excedente político gerado nas ruas, mas apresentaram como contraponto a defesa da legitimidade do poder Legislativo. Um poder oligárquico tem alguma legitimidade para se arrogar defensor da democracia diante de uma ação oligárquica de outro poder oligárquico? Parece que a reação democrático-formalista à PNPS não leva em conta tal questão.

Na superfície do debate político em torno da PNPS o formalismo democrático turva nossas vistas para o caráter oligárquico da profunda crise por que passa a República Democrática, que as massas nas ruas denunciaram reiteradamente e que interessa às oligarquias, seja do executivo seja do legislativo, fazer calar. Enquanto os termos do debate respeitarem as fronteiras do diálogo inter-oligarquias a captura das energias democráticas das multidões ficará na penumbra. Um passo para nos livrarmos disso é reconhecermos que nos dias atuais a linguagem e as formalidades democráticas são a matéria-prima principal com a qual a Presidente da República, através da PNPS, está esculpindo a expansão do Urstaat. A fabricação do “povo-participativo” pela PNPS tem este caráter. É com uma política de participação social que pretende dissipar a presença popular nas ruas.


sábado, 29 de março de 2014

Sade e a revolução

por Almir Pereira

*Este texto foi apresentado ao XXXVI Encontro da Escola Brasileira de Psicanálise Movimento Freudiano (EBPMF), em 15/03/2014, sob o título: Sade, a psicanálise e a política, título este que figurou aqui nos primeiros dias de publicação.

Uma das lembranças mais primárias dos estudantes acerca da história universal é a linha do tempo que apresenta pontos de ruptura separando os longos períodos históricos. A Revolução Francesa é, em tal linha, o ponto de ruptura que separa a Idade Moderna da Idade Contemporânea. As historiografias atuais têm verdadeiro horror a tal mecanicismo, mas este ainda povoa a memória daqueles que foram escolarizados quando a história mecânica ainda era a regra. Algo da Revolução Francesa ainda nos é contemporâneo: o republicanismo, ideologia que afirma a liberdade e igualdade entre os homens.

Em seu livro A filosofia no “boudoir”, Sade incluiu o panfleto intitulado “Franceses, mais um esforço se quereis ser republicanos...”. Nele o marquês dá sua versão do autêntico republicanismo, a concretização do mesmo deveria motivar os franceses a ir além do republicanismo terrorista que foi o ápice da Revolução e período no qual Robespierre foi o senhor da França. O panfleto é dividido em duas partes: A Religião e Os Costumes. Na primeira parte Sade afirma a necessidade do estabelecimento oficial do ateísmo para assegurar a autenticidade republicana. Na segunda parte são apresentadas as propostas de reforma dos costumes para torná-los adequados a uma república, já que Sade considera os costumes vigentes durante a Revolução como sendo frutos e garantia de continuidade do despotismo. Tanto o teísmo dos revolucionários, que queriam instituir uma religião civil, quanto a moralidade, ainda em vigor, deveriam, para Sade, ser substituídos pelas novas regras que ele propõe ao longo do texto.

Pierre Klossowski dedicou um capítulo de seu estudo sobre Sade à relação deste com a Revolução. Salta aos olhos a leitura sociológica que estrutura tal estudo. Sade como um produto da decadência da velha ordem social que quer impor tal decadência como a forma autêntica de estabelecer a nova ordem. Klossowski faz assim a defesa da ordem republicana, nascida da Revolução Francesa, contra a necessidade libertina sadeana de radicalizá-la.

Por conta dessa confrontação entre Sade e a Revolução, fui ao dicionário de política buscar alguma luz. Me surpreendi com o fato de que, em sua origem renascentista, a palavra revolução se referia “ao lento, regular e cíclico movimento das estrelas” (Bobbio: 1123), o que parece se opor ao sentido que lhe atribui o senso comum atual, o de mudança radical daquilo que é normal e regular. Essa palavra adquiriu caráter político, segundo o mesmo dicionário, no século XVII, mas mantendo uma correlação com o sentido acima, o de “retorno a um estado antecedente de coisas, a uma ordem preestabelecida que foi perturbada” (Bobbio: 1123), sentido que ainda era válido no período inicial da Revolução Francesa.

Foi durante a última década do século XVIII que a palavra revolução passou a significar a “fé na possibilidade da criação de uma ordem nova” (Bobbio: 1123), e isso não foi à toa, já que os iluministas, principal influência intelectual dos acontecimentos políticos daquela década na França, já operavam com este sentido implícito em suas formulações teóricas, postulando “a criação de novos instrumentos de liberdade” (Bobbio: 1123). Além de assegurar a liberdade, para os iluministas a revolução também deveria trazer a felicidade ao povo.

Ser livre, para Sade, é fazer o que a lei proíbe, ou seja, poder cometer crimes. Aliás, crime, para Sade, é coisa de uma ordem despótica, numa república autêntica a lei deve ser permissiva o suficiente para tolerar coisas como o assassinato, o incesto, a pedofilia, o estupro, a calúnia, o roubo etc. Só dá para falar que ainda há lei na imaginação sadeana porque nela há a proposição de várias obrigações: comunidade de homens e de mulheres, comunidade de crianças, fim da família, comunidade da riqueza, proibição da pena de morte etc.

O recalcamento originário constitui o inconsciente enquanto um processo metafórico. Nele o significante do desejo da mãe, ou seja, do Outro, é recalcado em função de um novo significante: o Nome-do-Pai. Assim, em relação à barra de significação, o significante do desejo da mãe fica embaixo desta barra e o significante Nome-do-Pai em cima. S2 sobre S1. No republicanismo o significante do desejo da mãe é a igualdade/liberdade, que aparece embaixo da barra de significação, em cima da qual aparece o significante Estado, ente de privação/controle por essência. Ao denunciar o republicanismo da Revolução, Sade mostra como este é contraditório, pois tal republicanismo só fez continuar por outros meios o gozo do Um sobre os demais. A máxima a que se refere esta continuidade seria: “posso gozar de seu corpo porque represento a 'Vontade Geral', me diz qualquer Estado republicano”. 

O republicanismo virtuoso da fase do Terror só fez ocultar a posição de senhor daqueles que compunham o Comitê de Salvação Pública, principalmente Robespierre. A escrita sadeana dirige-se, portanto, à fase virtuosa do republicanismo moderno. A vontade geral ficou condicionada a uma relação unívoca, que não garante à vontade que seja de fato geral. A vontade só se pode generalizar quando a sua aplicação é mútua. Para garantir o acesso mútuo à vontade Sade estipula a máxima: “posso gozar de teu corpo, pode dizer-me qualquer um”. Talvez possamos chamar isto de universalismo polimorfo ou polimorfia universalizada.

Para Sade o republicanismo virtuoso, apesar de trágico, é ainda um simulacro de republicanismo, já que funciona pela soberania do Um sobre os demais. O republicanismo autêntico sadeano significa dar um passo adiante na direção da soberania mútua entre todos, considerando que a única via de tráfego, unívoco ou mútuo, é a via do gozo. Sade considera o regime político unicamente como regime de gozo.

A Revolução propunha a felicidade, mas seus excessos não comprovaram isso. Já o republicanismo sadeano, em sua exortação dos excessos libertinos universalizados parece-nos menos triste que a carnificina virtuosa de Robespierre e seus confrades. Ao propor a universalização do acesso ao gozo Sade anula a possibilidade do mais-de-gozar? O republicanismo sadeano seria a única forma de superar o mais-de-gozar, já que nele não há limites ao gozo, logo todos gozam de todos e a permissividade legal sadeana, mais as obrigações comunitaristas postuladas pelo marquês, anulam toda concentração de possibilidades de gozo, inclusive as advindas da acumulação de mais-valia. A crítica de Sade ao republicanismo é uma crítica à economia de gozo da Revolução Francesa.

Na ordem atual os cidadãos comuns são as vítimas sadeanas voluntárias que se oferecem para o gozo dos governantes, seja como contribuintes, seja como ressentidos expectadores, choramingando diuturnamente contra a corrupção. Sade é aquele que revela o inconsciente político do republicanismo da Revolução. No republicanismo ideal proposto por Sade não há contradição, assim como no inconsciente. Sade também é um denunciador da servidão voluntária dos cidadãos , que o republicanismo de 89 fez funcionar.

O terrorista leninista, Slavoj Zizek, acha que o republicanismo atual é como café descafeinado, já que hoje a fase do Terror robespierreano parece-nos ter sido um desvio de intolerância e revanchismo, excessivo e sem propósito, apesar de não nos ser de todo repugnante a ideia de levar grande parte dos políticos brasileiros à guilhotina. Hipótese esta que se dissolve na reiteração cínica permanente da necessidade de se respeitar o Estado de direito. Numa situação onde o discurso republicano é articulado cinicamente, a interpelação sadeana parece não fazer sentido, pois pede “um esforço a mais” onde o sacrifício político utópico é mais estranho que um ser extraterrestre. Zizek é do tipo que ainda prescreve coisas como um “terror concreto' [algo como] a imposição de uma nova ordem sobre a vida cotidiana, item no qual, em última instância, [segundo ele] falharam tanto os jacobinos quanto a revolução soviética e a chinesa” (Zizek: 41).

Sade, no entanto, nos deixou o esclarecimento de onde nos levaria o idealismo terrorista da Revolução. O lado normalizante da modernidade foi muito bem explicitado por ele, que via na normalização republicanista o germe de um empobrecimento cultural, que foi posteriormente assinalado pela Escola de Frankfurt, por exemplo. Para Sade a navalha igualitarista da Revolução em sua ânsia de eliminar as diferenças produziria um quadro estético estéril no qual predominariam “peças fracas impostas pela força, romances insípidos, máquinas que idiotizam, cretinice e conformismo em massa, autores castrados de nascença, promoção com poses de avestruzes. Que vergonha, que tristeza, que ódio ao pensamento, que repressão!(...) O fanatismo os reúne [emigrados e revolucionários] na trindade eterna da burrice, da ignorância e do preconceito” (Sollers: 83).

Sade alinha o republicanismo autêntico com a generalização do crime porque entende os ideais republicanistas como uma forma de infantilismo político maquínico, que no seu afã de instaurar o reino da felicidade equivale igualistarismo e libertarismo a uma operação eliminadora do real das diferenças humanas. A Revolução acreditava piamente no republicanismo como um real possível e em sua paixão pelo real soltou à rua o demônio da equivalência absoluta dos humanos. Sade não deixa de referir esse encadeamento ao gozo. Na sua missiva mais famosa ele resume essa referência nos seguintes termos: “os horrores e os crimes acontecem em todas as épocas, e bem sabeis que meus romances estão incrementados deles para que eu possa revelar, pela primeira vez na história, sua nervura especial (grifo do autor). Sem mim, não tenho receio de dizer, os homens continuariam a se agitar em seu lodaçal de paixões e daí tirar prazer, sem se dar conta disso” (Sollers: 89-90).

Apesar de ateu e pregador do ateísmo, há fortes indícios de que Sade teria ido para o céu, se o céu existisse. Se houvesse deus, o deus dos cristãos, por exemplo, este teria perdoado os pecados do marquês em face da herança literária deixada por ele à humanidade, fruto de coragem e perspicácia raras entre os humanos. O principal de perspicácia na obra de Sade é aquilo que ela diz sobre “aquilo sobre o que não queremos saber”. Sade mostra a indivisibilidade entre crime e lei, que seus contemporâneos, marcadamente Kant, se esforçavam para negar com os artifícios retóricos mais sofisticados. 

O caminho sadeano para desatar o sujeito da lei é a disponibilização universal do crime, alguma coisa como um comunismo criminal.
Lacan interpela o republicanismo sadeano através do significante desejo. Para Lacan tal comunismo criminal é algo que resvala do desejo, convertendo a interdição em permissão. Sabemos através da obra freudiana que se não há lei “nada é permitido”. O laço social criminoso proposto por Sade continua a sancionar o supereu, portanto, a interditar o desejo por outros meios. Os meios mudam, mas os fins se conservam. Podemos falar aqui em imperativo superegóico sadeano. Nas palavras de Lacan: “A apologia do crime impele Sade apenas ao reconhecimento indireto da Lei. O Ser Supremo é restaurado no Malefício” (Lacan. 1998: 801).

Qual é a alternativa política da psicanálise ao republicanismo sadeano? Freud disse que governar é impossível. Freud é um niilista em matéria de política? Sabemos o quanto Freud foi ingênuo na avaliação política do Nazismo e o quanto isso o colocou em risco de morte junto com sua família. Freud parece que tinha um inconsciente político bovarista. Lacan também manteve-se distante da política, embora a reação deste diante do assédio nazista sobre sua mulher e sua sogra parece ter revelado um inconsciente político diferente do personagem biográfico Freud. A famosa frase lacaniana sobre a revolução também parece relevante: “a revolução sou eu!”. É o que ele parece sinalizar com sua interpelação ao texto “Franceses, um passo a mais se quereis ser republicanos”, em relação ao qual postula: “De um verdadeiro tratado sobre o desejo, portanto, pouco há aqui, ou mesmo nada” (Lacan. 1998: 802).

Para Lacan o fracasso lógico do panfleto sadeano supracitado se refere à sua crença no retorno ao estado de natureza como solução do imbróglio a que inscrição da lei nos condenou. Contra o terror revolucionário Sade nos convida à sua companhia prometendo-nos “que a natureza, magicamente, como mulher que é, nos fará cada vez mais concessões”(Lacan. 1998: 802). Para Lacan só pode haver um tipo de revolução, se é que se pode usar tal termo para designar algo que não pára de não se inscrever, já que a revolução lacaniana é da ordem de um bem-dizer do sintoma. Consequentemente, “a fórmula lacaniana do sujeito – como posição subjetiva articulada pela lógica significante – é a clareira que oferece um abrigo contra a soberania da natureza. Ela fornece o terreno para a discussão contemporânea do republicanismo.” (Silveira: 52).

A crítica lacaniana da política se pode fazer a partir da relação desta com o desejo. Alain Badiou considera o “pensamento lacaniano totalmente apolítico em seu próprio exercício, [mas Badiou pensa que Lacan] propõe ao pensamento uma espécie de matriz política” (Badiou & Roudinesco: 35). Segundo Badiou, há “uma continuidade entre o pensamento de Lacan e a atitude de tipo revolucionário, que reabre uma disponibilidade coletiva [que atualmente está] mergulhada na repetição ou barrada pela repressão estatal” (Badiou & Roudinesco: 35). Lacan se autodenominou o Lênin da psicanálise, o que se justifica por sua retirada da psicanálise do campo da cura médica e por sua crítica às promessas de felicidade do marxismo. Assim como Lênin, ele privilegia o potencial produtivo e inadaptável do desejo.

Para Roudinesco a psicanálise com Lacan torna-se “um vetor de emancipação, mesmo que se apresente sob formas explicitamente apolíticas” (Badiou & Roudinesco: 36). Essa psicanalista francesa pensa também que a defesa da inadaptabilidade do sujeito humano por Lacan foi um dos elementos que desencadeou o maio de 68 francês. Emancipação é um significante da mesma cadeia do significante revolução. Emancipação do capitalismo é como a esquerda chama a sua revolução. Se o sujeito está para sempre condenado à sua barra, à castração, a emancipação deste se pode dar em que termos? Parece-nos que a mais importante emancipação advinda da psicanálise é a emancipação da emancipação, ou seja, uma emancipação que equivale à pura e simples recusa da adaptação, já que o mundo emancipado da conotação “de esquerda” para essa palavra ainda parece acreditar na construção de um mundo ao qual o humano se possa adaptar plenamente.

A crítica lacaniana da emancipação tem como papel principal a rejeição de toda identificação, a busca por fórmulas novas de poder só engendram poderes piores que os atuais. O papel da luta política é ela mesma, não o alcance de algum ideal que a suprima como desnecessária. Luta de classes sim, mas sem revolução, ou uma revolução que seja a própria luta e não algum giro que se complete. Buscar com a luta a instauração de um processo permanente de saturação do poder pela insubordinação, que leve à supressão do medo da punição policial, social, política etc, generalizando uma resposta bartlebiana uníssona e infinita diante de qualquer proposição de submissão: “eu preferiria de não.” Lacan nos lembra como o marxismo foi um fracasso a este respeito e só fez reposicionar o discurso do mestre em outros termos. Logo o marxismo “que instaurou sua articulação sobre a função da luta, da luta de classes” (Lacan. 1992: 29).

O que a crítica lacaniana da emancipação denuncia principalmente é o esquecimento da esquerda de que “sempre há uma brecha ontológica, uma falha ontológica insuperável, incurável, entre o real e a realidade” (Alemán: 2). No entanto, é imensa a facilidade com que os maliciosos transformam isso em defesa do conformismo político. Por outro lado, fazer propaganda revolucionária articulada em torno da falta parece uma contradição em termos. A ideia de revolução emancipadora não causou tanto furor à toa, isso aconteceu porque é uma ideia extremamente sedutora. A crítica de Lacan parece uma arma também para se lutar contra a sedução política e contra a política da sedução.

Seguindo as pistas de Lacan, Alain Badiou retirou o significante comunismo do campo da utopia. Para Badiou o comunismo “é o verdadeiro nome do real como impossível” (Badiou & Roudinesco: 48). Até agora todos os que se envolveram na luta política em defesa de uma posição emancipadora o fizeram em nome de um real impossível. O que Badiou fez foi “dar nome aos bois”, num esforço de pontuar, psicaliticamente falando, no discurso emancipacionista uma formação do inconsciente político que insiste em obturar ideologicamente a falta constitutiva dos que habitam a linguagem. Resta saber quantos de nós ainda estão dispostos a se meter na defesa de algo da ordem de um real impossível, seja ele o comunismo, a democracia ou até mesmo o Estado de direito, migalha de reconhecimento este, que anda escasseando mundo afora.

A psicanálise, no entanto, mantém-se fiel à máxima subversiva contida na paráfrase do famoso ditado popular: “manda quem pode, desobedece quem tem juízo!”


Bibliografia


BADIOU, Alain & Roudinesco, Élizabeth. Jacques Lacan, passado presente. Rio de Janeiro: DIFEL, 2012.

BOBBIO, Norberto & outros. Dicionário de política. Brasília: Editora UnB, 1998.


LACAN, Jacques. O seminário, livro 17. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.

____________ Escritos: Kant com Sade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

KLOSSOWSKI, Pierre. Sade meu próximo. São Paulo: Brasiliense, 1985.


SADE, Marquês de. A filosofia na alcova. São Paulo: Iluminuras, 2000.


SOLLERS, Philippe. Sade contra o Ser Supremo. São Paulo: Estação Liberdade, 2001.

ZIZEK, Slavoj. Robespierre virtude e terror. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2008.

SILVEIRA, J. P. Bandeira da. Política brasileira em extensão: para além da sociedade civil. Rio de Janeiro: edição do autor, 2000.


Outros

ALEMÁN, Jorge. Operação esquerda lacaniana. São Leopoldo: IHU, 20/02/2011, http://www.ihu.unisinos.br/noticias/40768-operacao-esquerda-lacaniana






















domingo, 23 de março de 2014

Clientelismo e benevolência

por Almir Pereira

No debate que se seguiu à publicação de meu artigo “Oligarquia brasileira” (http://almirpereirablog.blogspot.com.br/2014/03/oligarquia-brasileira.html) um de meus interlocutores apontou a necessidade de uma elucidação mais minuciosa da diferença entre o clientelismo e a benevolência. A separação mais direta entre estes dois significantes é a que se refere à diferença da reciprocidade com o amor. Uma relação de reciprocidade é aquela que estabelece uma mutualidade entre as partes envolvidas. No amor a mutualidade não é uma condição de existência, ou seja, uma relação baseada no amor é unilateral e, mesmo que haja amor mútuo entre as partes envolvidas, a mutualidade nunca pode ser uma condição à priori para a existência do amor. O amor, inclusive, não surge se houver qualquer exigência de contrapartida. Só há amor se houver gratuidade.

A reciprocidade em torno da qual se estrutura o clientelismo, no entanto, não se dá entre partes iguais. Ela ocorre entre um cliente e um patrão, que intercambiam favores. O patrão fornece favores de ordem material e proteção atualmente e deixa aberta a hipótese de repetir isso no futuro. O cliente oferece em troca a sua lealdade e submissão, seja política, militar ou social. “Do lado do cliente a relação permite ter alguma segurança frente a necessidades futuras; do lado do patrono, a habilidade de manipular a esperança permitirá ampliar ao máximo possível a sua clientela com uma quantidade limitada de benefícios” (Avelino Filho. 1994: 229).

Uma relação de poder baseada no amor ao senhor por parte daqueles que a este estão submetidos se estabelece em troca da benevolência do senhor. Não que o senhor abra mão de suas prerrogativas de senhor, como a de castigar os que a ele estão submetidos, quando estes não cumprem alguma obrigação. A benevolência não é abrir mão das prerrogativas de autoridade, mas oferecer estima e afeto mesmo mantendo as prerrogativas do domínio, oferta que deve ser feita gratuitamente. Se não houver gratuidade os submetidos saberão que se trata de uma oferta que exigirá deles alguma contrapartida, que se trata de um gesto que busca sua lealdade, mas não conota amor.

O dicionário mais importante entre os que tem a política como objeto, o de Bobbio, curiosamente, não traz um verbete para o significante submissão nem para o tema da “servidão voluntária”. Como não é nosso objetivo aqui, apenas aproveitamos para deixar registrado este fato intrigante. Ao inserirmos em um buscador na internet a expressão “benevolência política”, nos deparamos com uma frase atribuída a Maurício de Nassau, chefe da ocupação holandesa de Pernambuco no século XVII, que diz o seguinte: “os portugueses serão submissos se forem tratados com cortesia e benevolência; sei por experiência que o português é gente que faz mais caso da cortesia e do bom trato que de bens”. Independente da veracidade da autoria ou do diagnóstico da frase, esta faz uma ótima distinção do que significa dominar pelo afeto em oposição ao domínio pela troca.

Em discurso de comemoração dos 10 anos do programa Bolsa Família, a presidente Dilma Roussef afirmou que esse programa varreu “as políticas clientelistas centenárias do nosso País” e emendou que a transferência de renda “significa poder de escolha, poder de decisão sobre o que é melhor para si e para sua família” (http://noticias.terra.com.br/ 30/10/2013). A presidente quis deixar claro que o Bolsa Família não é clientelista porque não exerce controle sobre seus beneficiários com base na política do favor. Nas “políticas clientelistas centenárias” a clientela ficava condiciona a como, a quando e a o que os patrões políticos locais estivessem dispostos a oferecer a seus clientes. Além de não ficarem devendo favor ao Governo Federal, os beneficiários do Bolsa Família dispõem de um recurso permanente e universal, uma cota mensal em dinheiro, garantindo a eles o “poder de escolha” a que se referiu a presidente na busca de demonstrar o caráter benevolente desse programa.

O Bolsa Família é um programa que altera o quadro onde o “clientelismo secular” atua, porque este “tende a se nutrir das situações de escassez, ao manter grande número de pessoas dependentes de recursos escassos, todos controlados e manipulados pela máquina política” (Avelino Filho. 1994: 229). Como os beneficiários do Bolsa Família tem sua escassez monetária diminuída, embora ainda muito longe de ser eliminada, isso traz uma exigência de reciclagem das estratégias usadas pelas oligarquias. Nesse sentido proliferaram os programas municipais e estaduais que destinam somas mensais em dinheiro para as famílias pobres, nos mesmos moldes do Bolsa Família.

Na fala da presidente a benevolência que caracteriza o Bolsa Família foi agenciada como uma forma de crítica do clientelismo, gesto que frisa a negatividade deste para destacar a positividade daquela. Essa operação traz a necessidade de um passo a mais na crítica política, para demonstrar que a benevolência não se situa num campo oposto ao do clientelismo, como querem fazer crer os adeptos dela. Ela é parte integrante do sistema de dominação oligárquica e uma forma mais meticulosa de poder, porque estabelece o domínio pela via da submissão desejada. Pela benevolência o dominador faz uma demanda gratuita ao dominado, para conquistar a adesão voluntária deste à relação de dominação.

A descrição da técnica afetiva de domínio escravocrata luso-brasileiro, feita por Gilberto Freyre em sua obra, foi a inspiração de José Paulo Bandeira para tornar o significante benevolência um significante da leitura da política (Silveira. 2014). A referência deste significante à cultura política brasileira tornou possível uma crítica política do Bolsa Família sem incorrer nos erros que outros analistas incorreram, principalmente aqueles que tentaram fazer desse programa uma extensão da política do favor. É justamente por ultrapassar a lógica clientelista que o Bolsa Família se mostra tão impermeável à crítica, mas também porque a cultura da benevolência tem um forte enraizamento no inconsciente político, seja no Brasil seja no restante do mundo. Mesmo os regimes socialistas, nascidos de uma aspiração emancipacionista, ao converterem-se em regimes oligárquicos de opressão política passaram a ser justificados por seus “benefícios sociais”.


Bibliografia

AVELINO FILHO, George. Clientelismo e política no Brasil, revisitando velhos problemas. São Paulo, revista Novos Estudos, CEBRAP, N.° 38, março 1994, pp.225-240.

BOBBIO, Norberto & outros. Dicionário de política. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1998.

SILVEIRA, José Paulo Bandeira da. Oligarquia e política. Rio de Janeiro: edição do autor, livro digital, Livraria Saraiva, 2014. http://www.livrariasaraiva.com.br/produto/6919323

Outras fontes

Terra, portal de notícias: http://noticias.terra.com.br/ , 30/10/2013.

domingo, 16 de março de 2014

William Waack

Começo com uma citação: “essa revolução, conforme o Reginaldo Nasser afirmou ao final do primeiro bloco do programa, foi já dominada pelos oligarcas, que é uma palavra bonitinha para dizer: pela 'máfia' na Ucrânia?

Esta citação foi extraída da fala do jornalista Willian Waack, na abertura do segundo bloco do programa Globonews Painel, no último dia 08 de março. A parte em itálico da citação foi dita em tom irônico, ironia que o próprio sentido da palavra “bonitinha” também conota. Porque o uso da palavra “oligarcas” em tal contexto irritou o jornalista? Waack, segundo o verbete da Wikipédia que leva seu nome, também é formado em sociologia e ciência política. Supostamente, ele teve um contato racional com termo oligarquia, referido, no mínimo, aos usos básicos do termo, como na obra de Aristóteles, na historiografia da República Velha etc. Ele sabe, portanto, que oligarquia é um termo de uso pejorativo consagrado e que quando se chama alguém de oligarca é com a intenção de apontar que este exerce um poder humanamente negativo. Como pode a palavra oligarca ser bonitinha? Oligarca virou uma palavra bonitinha porque Waack chamou por um significante mais forte: o significante máfia, que é muito mais feio, porque também é assustador.

O que Waack fez foi uma operação ideológica que menosprezou no imaginário do espectador relevância das oligarquias na política atual. Um programa de TV faz laço com o espectador médio. Associar para este o termo oligarca como sendo da ordem do eufemismo, como fez Waack, é censurar no imaginário a emergência da discussão em torno do fenômeno oligárquico. Fenômeno crucial da política e da economia mundiais atuais. Do qual o caso da política e da economia ucranianas são sintomas típicos. Reprimir o debate em torno da política oligárquica ucraniana é reprimir uma parte fundamental do debate político atual como um todo. Máfia é um significante do campo da criminologia. Quando um fenômeno criminológico adquire caráter político, a sua atuação no campo político tem que ser desvelada com significantes da análise política, não da criminologia. Como aluno de ciência política que foi, Waack sabe disso.

A irritação de Waack com a palavra oligarca, irritação que ele converteu em ironia censuradora do termo, foi uma operação da ordem do inconsciente político. Tentando forçar a discussão girar em torno do significante máfia, Waack propôs evitar a discussão da forma política que as máfias adquirem quando passam para o campo da política: a forma oligárquica. Quando se transformam em oligarquia o que as máfias têm em comum com as demais formas de oligarquia? O uso privado da esfera pública dentro da legalidade. A história das máfias mostra que elas nem sempre aspiram a ascensão à posição de oligarquia: caso do PCC, mas há outros em que sim, como parece ser o dos cartéis da droga na Colômbia e no México, já que uma oligarquia pode fazer o que a máfia não pode: usar a riqueza e o poder públicos como instrumento para si. Será que só as atividades mafiosas das oligarquias é que são repugnantes para Waack? Será que para ele uma oligarquia que opera apenas na legalidade política e econômica, se é que existe alguma, não se constitui num problema político “feio”? Feio no sentido de algo que deva nos causar repúdio.

Waack trabalha para a TV Globo, uma empresa de profundas raízes oligárquicas, cujas origens remontam à associação ilegal com o capital estrangeiro do grupo estadunidense Time/Life e à concessão de um bem público para exploração privada, esta conseguida de um regime político surgido e sustentado na violação da lei, a ditadura civil militar de 1964. A atuação política e econômica da TV Globo sempre se caracterizou pela vertente oligárquica. Não é uma empresa nascida nem desenvolvida num ambiente de concorrência de mercado, por isso sequer pode ser considerada uma empresa capitalista moderna. Alavancada pelo sistema Embratel durante a ditadura, tornou-se já nos anos 1980, um dos maiores monopólios televisivos do planeta. Sua atuação política sempre se pautou pela associação ao governo de plantão no Palácio do Planalto e em 1989 não teve nenhum pudor de usar sua influência para favorecer Collor de Mello no segundo turno da eleição presidencial. Collor era então o candidato da oligarquia brasileira (http://almirpereirablog.blogspot.com.br/2014/03/oligarquia-brasileira.html).

No último ranking dos homens mais ricos do Brasil os três herdeiros das Organizações Globo, TV Globo inclusive, estão entre os sete homens mais ricos do Brasil. Segundo a Revista Forbes, que faz esse ranking, as fortunas dos três irmãos Marinho, herdeiros da TV Globo e demais negócios da família, soma um valor de quase R$ 52 bilhões. Individualmente, segundo tal revista, só haveria no Brasil quatro pessoas mais ricas que cada um dos irmãos Marinho, já que caberia a cada um uma fortuna de mais de R$ 17 bilhões. Oligarquia para Aristóteles era o governo de poucos e voltado para o interesse desses poucos, ou seja, o governo do ricos para deixar os ricos mais ricos ainda.