Um dia antes
da final da Copa da FIFA, a polícia do Rio de Janeiro foi à
residência de 26 pessoas com mandados de prisão,17 delas foram
presas, 04 permaneceram foragidas. A ação teve a finalidade
explícita de coibir protestos no dia seguinte, nas proximidades do
estádio do Maracanã. Mesmo assim, algumas centenas de pessoas não
se intimidaram. Na tarde da final da Copa se reuniram a dois
quilomêtros do estádio com o objetivo de marchar até este em
protesto. Antes da saída da passeata a polícia militar fez um cerco
humano aos manifestantes, que foram impedidos de se deslocar e
agredidos reiteradas vezes pelos policiais.
Na semana
seguinte as redes sociais pulularam de denúncias contra o estado de
exceção e o caráter político das prisões. O inquérito policial
que embasou os mandados judiciais de prisão permaneceu inacessível
aos advogados dos presos, em flagrante ilegalidade, enquanto as
mídias divulgavam os trechos do mesmo inquérito. Depois da
concessão de habeas corpus a
uma parte dos presos e de uma nova decretação de prisão contra
eles, em 23 de julho o TJ-RJ
concedeu finalmente um
novo habeas corpus a todos os acusados. Na
concessão desta última medida o desembargador responsável por ela
argumentou que a prisão temporária não se fazia necessária em
vista do fato de que nem em caso de condenação os indiciados seriam
presos, já que para as acusações mais graves contra eles as penas
geralmente são convertidas em penas alternativas.
Para
solicitar os mandados de prisão e assim impedir os acusados de
protestar, a polícia se baseou na suposição de que estes tinham
uma potencialidade criminosa. Isso significou transformar a paranoia
em instituto jurídico. O que foi corroborado pelo judiciário quando
este emitiu os mandados. Em termos jurídicos, portanto, tal ação
não passou de um simulacro de legalidade para que seus agentes
dispusessem do uso da força como arma política. Agentes policiais e
judiciários se fizeram de instrumentos para uma ação violenta do
Estado sem observar a legalidade.
O
governo Dilma declarou seu
apoio a tal ação
através do ministro
da justiça, José Eduardo
Cardozo, que disse que as
prisões foram um ato dentro da legalidade (estadao.com.br). Em coerência com a defesa de prisões arbitrárias de
manifestantes o Governo Dilma recolocou o Exército
no cenário político brasileiro, de onde estava
afastado desde o final dos anos 1980, em virtude das atrocidades
cometidas por seus agentes
durante a ditadura civil-militar de 64 e também ao longo do governo
despótico de José Sarney, a
quem serviu como polícia sanguinária na greve dos metalúrgicos da
CSN em 1988. Dilma
atribuiu ao Exército
a função de espionar
potenciais manifestantes (estadao.com.br) . Já
que a função do Exército
é guerrear, esse ato é
uma declaração de guerra do
governo Dilma contra seus
oponentes políticos e contra
as multidões que protestam nas ruas?
Em 11 de agosto de 2014 a presidente Dilma Roussef tomou mais uma medida de mesma natureza que as ações governamentais acima. Ela sancionou a lei 13.022/2014, que dá poder de polícia e porte de armas às guardas municipais. Dado o privatismo dominante na cultura política brasileira, podemos dizer que agora todos os prefeitos disporão de uma milícia privada financiada com dinheiro público. Certamente que as guardas municipais serão usadas para subjugar todas as forças de oposição política nos municípios, mas especialmente para impedir ações de protesto dos cidadãos, como as ocupações de dezenas de câmaras municipais que ocorreram país afora a partir das jornadas de junho de 2013.
Em 11 de agosto de 2014 a presidente Dilma Roussef tomou mais uma medida de mesma natureza que as ações governamentais acima. Ela sancionou a lei 13.022/2014, que dá poder de polícia e porte de armas às guardas municipais. Dado o privatismo dominante na cultura política brasileira, podemos dizer que agora todos os prefeitos disporão de uma milícia privada financiada com dinheiro público. Certamente que as guardas municipais serão usadas para subjugar todas as forças de oposição política nos municípios, mas especialmente para impedir ações de protesto dos cidadãos, como as ocupações de dezenas de câmaras municipais que ocorreram país afora a partir das jornadas de junho de 2013.
Como
reação à prisão dos manifestantes no Rio de Janeiro ganhou força
um movimento contra o “estado
de exceção”. A OAB, sindicatos e vários movimentos sociais se
juntaram para denunciar as
arbitrariedades cometidas pela polícia e pelo judiciário.
Para
muitas pessoas estas
arbitrariedades configuram
a vigência de um “estado
de exceção” (Agamben) no
Brasil, já que tais ações
ignoram o “estado de direito”.
Essa gestação de um Estado
sem lei durante um período de vigência da democracia já aconteceu
no Brasil. Durante o período
democrático que se iniciou no
mês de julho de 1934, Getúlio Vargas foi
paulatinamente abolindo os controles legais sobre o exercício do
poder de Estado até que no
dia 21 de março de 1936 todos
os direitos democráticos foram suprimidos.
A
caracterização
como estado de exceção da
adoção de medidas despóticas pelo Governo Dilma ou do
apoio deste governo à adoção de tais
medidas pela polícia e
pelo judiciário cria uma
confusão teórica na elucidação desses fatos, já que estamos em
plena vigência do estado de direito.
Tal caracterização faz eco
à teoria do estado de
exceção de
Giorgio Agamben, um dos
maiores estudiosos dessa
questão. Agamben explora a
fronteira entre o direito e a política em sua
abordagem do estado de exceção (Agamben).
Para Agamben vivemos
sob o domínio do “estado de exceção permanente”, pois nosso
sistema jurídico-político está organizado em torno do estado de
exceção, o que faz desse sistema “uma máquina letal” que
“continuou a funcionar quase sem interrupção a partir da Primeira
Guerra Mundial, por meio do fascismo e do nacional-socialismo, até
nossos dias” (Agamben: 131). O que Agamben faz assim é implodir a
própria noção de estado de direito, já que este
para Agamben é na verdade
uma derivação do estado de exceção que foi irremediavelmente
dissolvida por este. Portanto o “retorno do estado de exceção
efetivo em que vivemos ao estado de direito não é possível, pois o
que está em questão agora são os próprios conceitos de “estado”
e de “direito”(Agamben:131).
Com
sua
teoria do estado de exceção permanente Agamben descarta a oposição
entre Estado com lei e Estado sem lei, ou seja, entre estado
de direito e despotismo. De
acordo com a teoria do estado de exceção permanente, se há Estado
então há despotismo. O que
isso parece representar é uma abolição da
oposição real/simbólico. Como o real de todo Estado é uma captura
de mais-gozar pelos aparelhos deste, que
nenhuma forma simbólica inscrita no Estado consegue abolir, então
todo Estado é uma forma de escravidão. Mas seriam desprezíveis as
diversas formas simbólicas que o Estado pode adquirir? Para Marx o
trabalho assalariado “é como se fosse uma escravidão”, mas ele
não despreza a diferença entre o proletariado e os escravos, ou
servos, e atribui um potencial revolucionário a tal diferença em
favor do proletariado. Agamben parece insistir na utopia iluminista
que esperava reduzir o real ao simbólico e assim suprimir a oposição
entre eles.
Seja
na sequência de fatos atuais relativos ao Governo Dilma descritos
acima, seja nos fatos relativos à Democracia de 34, que ainda vamos
apresentar, o que está em questão não é o “estado de exceção
permanente” como julgam aqueles que seguem Agamben. O que Dilma
começou a construir
e que Getúlio levou a um
desenvolvimento pleno, foi o
Urstaat: a organização do uso da violência sem lei na forma da organização do uso da violência por leis despóticas. Esta forma é um simulacro da organização do uso da violência sem lei. Em ambos
os casos, o de Dilma e o
de Getúlio, o real da
violência sem lei sendo usada de forma organizada sobre a população
supôs a sua legitimação simbólica pelas máquinas de produção
da opinião pública, antes pela
imprensa, agora pela
mídias, e a dissolução da inscrição simbólica do estado de
direito na legislação, através de sucessivas alterações das
leis democráticas.
O real do uso da violência
sem lei iniciou-se amparado na garantia simbólica vigente no artigo
113 da Constituição de 34, como veremos a seguir. A ampliação do
real uso da violência sem lei
também se deu com a remoção
de garantias simbólicas estabelecidas na Constituição. Isso tudo
sempre se apresenta
articulado também pelo
imaginário, que nos dois casos acima
apresentou-se na forma de um
suposto elemento político ameaçador.
Como
Vargas conseguiu engendrar o Estado sem lei a partir do
estado
de direito? Como ele conseguiu suprimir os controles democráticos do
poder estando o estado
democrático em plena vigência? O Brasil já experimentou outras
vezes a passagem da democracia para um Estado sem lei, mas em pelo
menos duas delas, em 1930 e em 1964, a ruptura da legalidade se deu
de forma abrupta
através de um golpe de
estado perpetrado pelo
Exército
em aliança com frações oligárquicas. De 1934 a 1936 a passagem da
democracia ao Estado sem lei se deu de forma paulatina e por
auto-dissolução, ou seja, as próprias instituições
da democracia foram engendrando
sua extinção.
A resposta a estas questões está ligada à emergência do “objeto
totalitário”(Zizek: 67) na democracia de 34. Vargas incorporou
como sua função a de “agente-instrumento ilegal da lei” (Zizek:
67) arrogando-se o papel de defensor da ordem contra a subversão.
Para Getúlio a reintrodução da democracia no Brasil significava um
obstáculo ao “necessário saneamento da vida financeira [e ao]
equilíbrio orçamentário” do país. Para ele “só a manutenção
da ditadura, livre de peias políticas poderia” (Neto. 2013: 201)
garantir as condições necessárias para o enfrentamento de tais
questões. Para o oligarca de formação positivista, admirador
confesso do fascismo (Neto. 2012: 346), na política a ordem
administrativa exigia a supressão da democracia.
Mas não era na defesa da ordem administrativa, financeira e
orçamentária que Getúlio fundamentava seu papel de
“agente-instrumento ilegal da lei”. Isso ele alicerçava
arrogando-se defensor da ordem política e social contra a subversão.
Para tanto ele tinha criado, em janeiro de 1933, a Delegacia Especial
de Segurança Política e Social (DESPS), para o comando da qual
nomeou o sinistro delegado Filinto Müller. Este tornou-se famoso por
sua crueldade e truculência contra presos políticos,
características reconhecidas e apoiadas por Getúlio. A escalada de
prisões promovidas por Filinto Müller no comando da DESPS chegou ao ápice ao final de 1936, quando ela atingiu o número de 7.056 presos
políticos, oficialmente sob sua custódia. Fora outras centenas de
prisões extra-oficiais (Neto. 2013: 258).
Entre os presos a maioria eram trabalhadores ligados a sindicatos
independentes do Governo. Também havia muitos jornalistas, além de
militares, professores das faculdades de direito e de medicina do Rio
de Janeiro, os escritores Graciliano Ramos e Jorge Amado, um senador,
três deputados federais e o médico Pedro Ernesto, prefeito do Rio
de janeiro durante a Democracia de 34. Todos acusados de subversão.
A médica Nise da Silveira foi encarcerada por participar da União
Feminina do Brasil e por possuir livros marxistas. O educador Anísio
Teixeira perdeu o cargo de secretário municipal de educação e
cultura sob a suspeita de ser ligado aos comunistas. As condições
das prisões e o tratamento dispensados aos presos eram insalubres e
brutais. As denúncias de tortura eram numerosas e frequentes. Nessa
época o Brasil e a Alemanha nazista tinham relações internacionais
amigáveis. A DESPS estabeleceu um intercâmbio com a GESTAPO
(polícia política nazista) para troca de informações e mandou um
de seus agentes fazer um estágio de um mês com o nazistas, com os
quais ele aprendeu, inclusive, novas técnicas de tortura.
A escalada de arbitrariedades e de violência policial não se
baseava somente em acusações genéricas de subversão. A subversão
era o termo mais amplo dentro do qual a categoria comunismo era o
rótulo mais frequente atribuído aos oponentes do Governo Vargas.
Comunista também era a imagem mais demoníaca do imaginário
político oficial. Na medida em que o ódio anti-comunista se
espalhava pela sociedade, através de ações de propaganda do
Governo ou dos jornais, crescia o apoio popular à repressão contra
todos que a polícia política de Getúlio taxasse de comunista. A
difusão e intensificação da paranoia anti-comunista teve papel
fundamental para o governo Vargas ir ganhando um apoio crescente para
suas propostas de supressão dos limites legais democráticos ao
exercício do poder e ir gradualmente implantando um Estado
despótico.
A própria Constituição de 1934 abria precedentes para a
instauração de uma “caça à bruxas”, já que foi introduzido
nela o conceito de “segurança nacional” e a autorização da
expulsão de estrangeiros “perigosos à ordem pública”. A partir
destes pontos Getúlio pode articular uma narrativa persecutória
contra os que se opunham ao seu governo, acusando-os de atentarem
contra a “segurança nacional”. Sendo que na definição de
“ameaça à segurança nacional” podia caber qualquer coisa que o
Governo julgasse útil à ampliação de seus poderes. Como o
comunismo era uma ideologia internacional e internacionalista, estas
características eram apresentadas pelo governo Vargas como sinais
automáticos de “ameaça à segurança nacional”. Como uma parte
considerável do movimento operário era de estrangeiros, a garantia
legal de expulsão destes do país visava intimidá-los e afastá-los
de quaisquer ações de protesto e reivindicação.
Já em 1934, a repressão policial ao movimento operário
independente e ao jornalismo crítico do Governo começou a crescer.
Em 07 de outubro aconteceu a “Batalha da Praça da Sé”, quando
uma manifestação integralista foi dissolvida à força
por militantes do movimento operário (comunistas, anarquistas e
outros). Do confronto resultaram seis mortos e ao menos 50 feridos. A
partir daí a repressão policial contra o movimento operário não
parou de crescer. Os integralistas, no entanto, não eram incomodados, já
que o chefe de polícia do Distrito Federal, Filinto Müller,
simpatizava com sua ideologia e Getúlio os via como úteis para uma
aliança tática. A perseguição ao sindicalismo independente também
era uma reação a uma série de greves de trabalhadores que foram
deflagradas no período. Como a nova constituição garantia ampla
liberdade de reunião e de manifestação pública, a mobilização
dos trabalhadores por suas reivindicações voltou a ganhar força.
Os jornais de oposição também passaram a ser atacados pela
polícia com base em interpretação do artigo 113 da Constituição,
que embora assegurasse a liberdade de expressão, proibia a
“propaganda de guerra ou de processos violentos para subverter a
ordem política ou social”(Neto. 2013: 199). Jornais foram fechados
sob a acusação de incorrerem nessa infração. O Jornal do Povo
foi o primeiro. Seu diretor foi preso arbitrariamente e só foi solto
mediante protesto da ABI. Dias depois, o Barão de Itararé, apelido
do jornalista Apparício Torelly, foi sequestrado, espancado e teve
seus cabelos raspados. Era um recado intimidatório da polícia
getulista contra o jornalismo.
Diante da brutalidade e das arbitrariedades da polícia política
com os jornalistas e com o movimento operário e da tolerância de
Vargas com as manifestações dos integralistas os ânimos
daqueles que não se submetiam ao despotismo getulista era cada vez
mais acirrado. Todos aqueles que acreditavam minimamente nas
liberdades democráticas estavam indignados com o terror de Estado
que se estava instalando contra os que se opunham ao Presidente. A
polícia e os partidários de Getúlio, no entanto, reclamavam
poderes ainda mais despóticos para reprimir as oposições. Getúlio
e seus aliados argumentavam que os direitos democráticos eram um
empecílio para o combate da ameaça comunista. Uma parte cada vez
maior da mídia cerrava fileiras com esta narrativa. Desse contexto é
que surgiu a proposta da “Lei Monstro”.
“Lei Monstro” é como a imprensa e as organizações operárias
da época apelidaram a Lei de Segurança Nacional (LSN). A LSN criava
uma “base legal ampliada para o funcionamento repressivo do
sinistro supereu despótico getulista”(Silveira: 110). Isso se deu
porque ela “tornava inafiançáveis uma ampla gama de 'crimes
contra a ordem política e social', tornando praticamente impossível
a existência de oposição política ao Governo Vargas. A LSN também
autorizava a retirada de circulação de jornais, o confisco de
livros e a apreensão de revistas. Quem fosse acusado com base na LSN
não tinha direito à ampla defesa e era submetido a rito sumário”
(Neto. 2013: 206). Em função da propaganda anti-comunista e da
oposição das classes médias e dos empresários em relação às
greves dos trabalhadores, estes setores sociais acolheram a LSN com
louvor.
Em
função do grande
apoio dos setores sociais dominantes, a LSN foi aprovada no Congresso
por ampla maioria. A primeira vítima da Lei
de Segurança
Nacional
foi a ANL (Aliança Nacional
Libertadora), uma frente ampla nacionalista, reformista e democrática
formada por militares egressos do tenentismo, comunistas e
nacionalistas não getulistas. A ANL chegou a ter quatrocentos
núcleos espalhados pelo Brasil, mas depois de ampla campanha de
grande parte dos jornais associando-a ao fantasma da conspiração
comunista todos eles foram fechados pela polícia. O próprio governo
ficou surpreso com a ausência de reação dos trabalhadores e de
setores das classes médias que haviam participado com milhares de
pessoas das mobilizações da ANL. A passividade popular demonstrada
diante do fechamento da ANL foi mais um sinal da eficácia do terror
getulista contra as oposições ao seu governo.
O único
setor que supostamente ainda restava na oposição a Vargas estaria
dentro das fileiras do Exército. Sob o comando de Luís Carlos
Prestes, que havia retornado clandestinamente da União Soviética, o
PCB apostava numa rebelião militar para derrubar Getúlio e alçar
Prestes ao poder. A rebelião militar liderada por Prestes foi
deflagrada em 27 de novembro de 1935 em duas unidades do Exército no
Rio de Janeiro. Como o Governo tinha informantes entre os comunistas,
as autoridades não foram surpreendidas e a rebelião foi sufocada em
algumas horas. Somente algumas dezenas de militares aderiram ao
movimento, contrariando a expectativa imaginária que pairava em
torno da figura do líder da Coluna Prestes. Para os comunistas a
mística em torno de Prestes atrairia grande número de adesões.
Essa mística não se mostrou tão forte e a falta do elemento
surpresa impediu a presença de Prestes nos quartéis para ativá-la.
O movimento no Rio de Janeiro foi precipitado por duas rebeliões
militares deflagradas em Natal e no Recife nos dias anteriores. Em
reação a estas o Governo propôs e o Congresso aprovou, por ampla
maioria, em 25 de novembro, o estado de sítio em todo o país.
Com o fracassado
movimento liderado por Prestes e a decretação do estado de sítio,
multiplicaram-se as prisões de militantes comunistas e de soldados e
oficiais suspeitos de simpatizarem com a rebelião. Luís Carlos
Prestes também acabou preso e todo o dispositivo clandestino do PCB
que organizou a tentativa de golpe foi desmantelado e encarcerado. A
força militar, estratégica e política dos comunistas mostrou-se
quase insignificante enquanto uma capacidade real para a tomada do
poder, mas passou a ser alardeada pelo Governo e pelos jornais como
se tivesse proporções muito maiores. Isso facilitava a expansão do
Estado sem lei pelas forças getulistas e transformava qualquer
protesto em colaboração com o sinistro e gigantesco mostro
comunista.
Getúlio tinha
informações suficientes para abortar a rebelião comunista, mas
preferiu deixá-la acontecer e servir-se dela como “o pedacinho de
real”(Zizek: 156) que potencializaria exponencialmente a paranoia
anti-comunista em que fundava-se a expansão do Urstaat. Na
atualidade esta função de “pedacinho do real” é exercida pelos
atos violentos niilistas promovidos por manifestantes. Outra forma de
aumentar a paranoia anti-comunista e anti-oposição foi a
circulação de calúnias contra os rebelados. Perpetuou-se nas
forças armadas brasileiras a versão de que alguns dos 22 militares
mortos, que permaneceram leais a Getúlio, teriam sido assassinados
pelos rebelados enquanto dormiam nos quartéis. “Nos dezessete
volumes que compõem o inquérito policial (…) não houve nenhuma
menção a [este] fato”(Neto. 2013: 250). Com tal versão falaciosa
os rebelados foram convertidos de insubordinados antigetulistas em facínoras assassinos de seus próprios companheiros de caserna.
O tentativa comunista
de tomar o poder serviu para calar completamente as vozes que ainda
se opunham ao Governo na imprensa. Esta foi ampliando sua conivência
com as arbitrariedades do Governo não só por afinidade
anti-comunista com este, mas também por conveniência financeira, já
que o Governo Vargas era um importante financiador para a maioria dos
órgãos noticiosos. Mas o fato símbolo da submissão jornalística
ao Governo foi a oferta do título de sócio benemérito da ABI a
Getúlio Vargas em agradecimento pela doação de verbas oficiais
para a construção da sede própria daquela instituição, isto num
momento em que a polícia política impunha-se a qualquer voz
dissonante na imprensa. Na cerimônia em que recebeu tal título,
Getúlio agradeceu a submissão dos jornalistas: “Quando se tornou
necessário assegurar a integridade da pátria, não foram menos
bravos os combatentes da pena, cerrando fileiras em torno do poder
público, prestigiando-o, esclarecendo a opinião e repelindo com
energia, a audácia dos executores do plano arquitetado e custeado
por estrangeiros para transformar o Brasil em colônia de Moscou”
(Neto. 2013: 253).
Com as derrotas de
todas as forças políticas de oposição e o silenciamento total da
imprensa, Getúlio solicitou ao Congresso a ampliação de seus
poderes. Após negociação com os parlamentares, que incluiu o
recebimento de dezenas deles em audiências individuais com o próprio
Getúlio, a Câmara aprovou com mais de 70% dos votos, três emendas
à Constituição que ampliavam os poderes discricionários do
Presidente. A primeira “autorizava o presidente da República a
equiparar a então 'comoção intestina grave' ao estado de guerra”,
o que, quando posto em prática, suprimiria todas as garantias
constitucionais. A segunda emenda “determinava a perda de patente e
de posto, por decreto do Executivo, de qualquer oficial da ativa ou
da reserva que houvesse praticado crime de subversão”. A terceira
permitia a demissão sumária dos funcionários públicos acusados de
crimes políticos (Neto. 2013: 254).
Em seguida à
aprovação destas três emendas Getúlio restabeleceu o estado de
sítio, que havia sido suspenso para o Congresso votá-las, e
aprofundou-se a escalada de prisões a inimigos reais e imaginários
do Governo. Isso, inclusive, demandou “a criação de cinco novas
colônias penais agrícolas para dar conta do grande número de
prisioneiros considerados 'perigosos socialmente” (Neto. 2013:
254). Paralela à generalizada perseguição policial Getúlio
institucionalizou a paranoia como política de governo ao criar a
Comissão Nacional de Repressão ao Comunismo, “que incentivava, em
caráter oficial, as delações públicas de adversários políticos
– ou mesmo de simples desafetos” (…). A simples denúncia
originava a prisão imediata do suspeito. Não era a certeza da
prática efetiva do crime, mas a mera possibilidade de um delito vir
a ser praticado que determinava o encarceramento de um indivíduo”
(Neto. 2013: 257). Tal comissão tinha, por isso, um caráter
inquisitorial.
Em um tal clima, mesmo
com as denúncias frequentes de tortura generalizada e maus tratos aos
presos, só alguns parlamentares se arriscavam a usar o único canal
público de protesto que restou: a tribuna do Congresso Nacional.
Alguns juízes também não se furtavam ao seu papel e para desagrado
da Comissão anticomunista de Getúlio concediam habeas corpus
à presos que o Governo não desejava ver em liberdade. Incentivado
por seus principais agentes de repressão a endurecer ainda mais a
perseguição a seus oponentes, Getúlio, em 21 de março de 1936,
encerrou a breve e autodissolvente democracia iniciada em julho de
34. Através da decretação do estado de guerra por Vargas todas as
garantias constitucionais foram suprimidas, inclusive os direitos dos
parlamentares. Com isso o Congresso foi invadido pela polícia e os
parlamentares que vinham denunciando a tortura foram presos.
A extensão do Urstaat
no governo de Dilma Roussef ainda é pequena quando comparada com
aquela estabelecida por Getúlio em março de 1936. Do ponto de
vista lógico, no entanto, as medidas despóticas de Dilma se
equiparam plenamente ao sentido político da atuação de Vargas ao
longo da Democracia de 34. No caso da atual presidente do Brasil ser
reeleita, ela usará a força política conferida pelas urnas para
seguir seu trabalho de produção do Estado sem lei no século XXI
brasileiro. Todas as demonstrações da presidente nos últimos meses
corroboram esta perspectiva. Assim a Democracia de 1988 aprofundará
seu processo de autodissolução e transmutação em despotismo,
assim como aconteceu com a Democracia de 34.
Bibliografia
Amaben, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo, Boitempo,
2004.
Neto, Lira. Getúlio: Dos anos de formação à conquista do poder
(1882-1930). São Paulo, Companhia das Letras, 2012.
Neto, Lira. Getúlio: Do Governo Provisório à ditadura do Estado
Novo (1930-1945). São Paulo, Companhia das Letras, 2013.
Silveira, J. P. Bandeira da. Oligarquia e política. Rio de
Janeiro, Publique-se, 2014.
Zizek, Slavoj. Eles não sabem o que fazem. Rio de Janeiro,
Jorge Zahar Editor, 1992.
Obrigada pelo excelente texto elucidativo.
ResponderExcluirParabéns! Qto talento!
Saudações literárias,
Simone Guerra
Agradeço sua gentileza, Simone, obrigado.
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