quarta-feira, 11 de março de 2015

Cuba e o jornalismo foraclusivo

por Almir Pereira

Qual é a cadeia significante que pilota a política cubana na atualidade? Qual é o significante mestre que ordena o sistema político de Cuba? Ao fazermos uma cobertura jornalística sobre a sociedade cubana atual e sua inserção no mundo, as respostas a tais questões são desprezíveis? Em Cuba ainda vigora a cultura política totalitária stalinista no mundo-da-vida, na política e no aparelho de Estado? O totalitarismo stalinista cubano é filiado à tradição populista latino-americana e russa (Bandeira, 2015). Fazer uma matéria jornalística com pretensões abrangentes, mas evitando tocar na lógica que pilota a política cubana é uma capitulação frente ao stalinfidelismo.

O significante totalitarismo stalinista é primordial para entendermos Cuba na atualidade. Se a produção jornalística tiver pretensão de tratar da realidade cubana excluindo este significante, tal operação terá o status de uma foraclusão? Neste caso, a foraclusão significa “a rejeição de um significante primordial para fora do universo simbólico do mundo-da-vida do sujeito-população cubana” (Bandeira, 2014). O sujeito-população cubana vive sob a égide de um significante primordial que, na abordagem jornalística, é rejeitado como se fosse algo inexistente no universo simbólico desta mesma população. A sociedade do espetáculo latino-americana, quase na sua integralidade, trabalha com a foraclusão do totalitarismo stalinista!

Foracluindo os significantes primordiais da política cubana o jornalismo brasileiro amarra um laço que ata a população brasileira ao inconsciente político stalinista. Dessa forma desaparecem para o público brasileiro os “gestos, alucinações, delírios, sugestões, funções e ritos fáticos”(Bandeira, 2014) de ordem stalinista, que habitam o cotidiano da população cubana. Assim as diferenças políticas no campo da vida, entre Cuba e o Brasil, não vão desaparecendo? Assim a importância das liberdades democráticas vigentes no Brasil não é dissolvida pelo totalitarismo da sociedade do espetáculo? Ao retratar Cuba foracluindo o totalitarismo stalinista, o jornalismo brasileiro revela sua verdadeira face anti-liberal e anti-libertária. A foraclusão do totalitarismo stalinista pelo jornalismo brasileiro revela, por um lado, o caráter de simulacro do liberalismo político midiático e, por outro, o funcionamento artefactual da lógica totalitária da indústria da comunicação brasileira.

Em recente entrevista ao jornal espanhol El País, Pablo Milanés, um dos maiores ídolos da música popular cubana, apontou para a ignorância da mídia mundial em relação aos campos de concentração stalinistas (Gulags) que vigoraram em Cuba por décadas e que chegaram a encarcerar 40.000 pessoas e submetê-las ao regime de trabalhos forçados. Além dos Gulags cubanos, Milanés também aponta para os “procedimentos stalinistas que prejudicaram intelectuais, artistas e músicos” através de coação peloo regime político sobre o trabalho destes profissionais. Pablo Milanés ainda continua alinhado com a esquerda latino-americana e é admirador de governantes como os presidentes Rafael Correia do Equador, Evo Morales, da Bolívia e Pepe Mujica, do Uruguai. Apesar de ainda ter uma posição política de esquerda, o cantor cubano denuncia que a suposta abertura pela qual estaria passando Cuba é uma ficção. Ele lembra que “sempre disse que essas aparentes aberturas são simplesmente maquiagem e que é preciso ir a fundo, caminhar pelas ruas para ver que nada mudou”.

No tocante à permanência da política cultural stalinista no país, que Milanés também aponta na entrevista citada, o caso da banda de rock anarcopunk Porno Para Ricardo é uma evidência de que não houve abertura nenhuma em Cuba. Gorki Águila, vocalista da banda, foi preso em 2008 sob a acusação de periculosidade, ou seja, acusado de ter a intenção de cometer crimes. A criminalização das intenções é um dispositivo jurídico tipicamente totalitário e que também foi a base da argumentação dos USA para a invasão do Iraque em 2003. Rivais em vários temas, as elites políticas cubana e norte-americana tem muita afinidade quando se trata de usar dispositivos totalitários para a manutenção e ampliação de seus poderes. Depois de solto, Gorki Águila passou a ser vigiado permanentemente “por câmeras, como se estivesse em um cativeiro público”. Uma violação do direito básico à privacidade que qualquer indivíduo deve ter, mas que a cultura política stalinfidelista não reconhece. É curioso que a maior exposição de tais fatos na mídia brasileira tenha se dado no programa Música na Mochila, um programa documental especializado de um canal por assinatura. A dissidência anarcopunk cubana é desprezada pelos “liberais” do jornalismo político brasileiro.

Outro exemplo de que a política stalinista está em pleno vigor em Cuba e que Milanés está certo ao apontar o caráter de simulacro da suposta abertura cubana é a denúncia feita pela Comissão de Direitos Humanos de Cuba, no último dia 22 de fevereiro, um domingo. Naquele dia foram presos em Cuba mais de 150 ativistas dos direitos humanos. Estas prisões ocorreram depois da reaproximação diplomática entre os USA e Cuba. Será que o regime cubano teme que as passeatas dominicais do grupo Damas de Branco, que luta pela libertação de presos políticos, ganhe a simpatia da população e se transforme num movimento de massas anti-totalitário? Seriam estas prisões um sinal emitido pelo governo cubano para a população, de que a reaproximação com os USA não significará um milímetro de deslocamento na direção totalitária da cultura política cubana?

No Brasil o totalitarismo cubano é um tema tratado pelo jornalismo com diferentes graus de foraclusão. O jornalista Fernando Gabeira é um egresso da luta armada da esquerda contra a ditadura militar de 1964, que renegou esse passado e se converteu num pacífico defensor dos direitos individuais e das liberdades políticas. No entanto, Gabeira publicou um artigo em 24/10/2014, no qual distancia o regime político cubano do totalitarismo stalinista. Para Gabeira, ao contrário da esquerda comunista européia , “no Brasil, o stalinismo não tem o mesmo peso. O fio da meada é a relação [da esquerda brasileira] com a ditadura cubana, a admiração por um regime falido e o silêncio inquietante sobre seus crimes”. Se o regime cubano não é stalinista, como Gabeira o classificaria? Seria um tipo de totalitarismo sui generis? A posição de Gabeira leva água para o moinho daqueles que querem manter o “silêncio inquietante” diante da ausência de liberdades em Cuba argumentando que trata-se de um regime mais brando que o stalinismo. Gabeira se tornou um intelectual dócil, e cordato, em relação à ideologia dominante latino-americana bolivarianista?

O conselho dado acima por Pablo Milanés, de caminharmos pelas ruas de Cuba para ver como vive sua população, foi seguido por dois jornalistas brasileiros da GloboNews durante alguns dias do último mês de janeiro. Através de caminhadas pelas ruas de Havana, abordando seus habitantes, os jornalistas produziram uma longa reportagem, que foi ao ar no Jornal das Dez, daquela emissora, nos dias nove, dez e onze de fevereiro de 2015. Essa reportagem teve como principal pretensão apresentar as condições de vida em Cuba e a opinião dos cubanos sobre uma série de assuntos. 

A exibição da reportagem sobre Cuba pelo Jornal das Dez começou com uma entrevista do âncora com os repórteres que estiveram em Havana produzindo a matéria. O estranhamento já se inicia por aí. Os repórteres falaram dos vários entraves que o Estado cubano opôs à realização da reportagem, mas em nenhum momento apontaram como causa disso o controle total que o regime político de Cuba exerce na produção de informações sobre aquele país. O espectador que ignora a cultura totalitária que articula o Estado em Cuba não pode entender através da reportagem o porquê de tais restrições. A reportagem opera com a suposição de que todos já conhecem o totalitarismo cubano.

A transposição do raciocínio acima para a narrativa da reportagem propriamente dita anula qualquer perspectiva crítica, na medida em que esta buscou nas ruas, entrevistando as pessoas comuns, a opinião dos cubanos sobre sua cultura política. Nenhum dos entrevistados criticou a ausência de liberdade. Cuba jamais conheceu o liberalismo político. Segundo a reportagem, os cubanos estão satisfeitos com sua vida política totalitária. O absurdo de uma tal postura é evidente, pois como pode uma população que vive sob o controle stalin-fidelista, há seis décadas, não temer afrontá-lo ou mesmo apresentar um conhecimento mínimo das liberdades elementares, se estas jamais existiram como cultura política da população cubana? Se os repórteres fossem entrevistar os críticos cubanos do regime político de Cuba, que mencionamos acima, certamente não teriam encontrado apenas o que chamaram de “permanência da chama dos ideais da revolução na população”. Parece que o reatamento diplomático dos USA com Cuba deu licença para o jornalismo oligárquico brasileiro juntar-se ao coro pró-stalinista bolivarianista da esquerda latino-americana.

Contraditoriamente, a reportagem mesma fala de um “desejo da população de conhecer outros "sistemas políticos”. Vivendo sob um controle totalitário da informação como podem os cubanos fazer uma crítica comparativa de sua vida política? Confrontando a diferença extrema entre o senso comum da cultura totalitária com países onde há liberdade de informação, a reportagem parte para uma generalização impossível de aceitar: “não importa o sistema político ou o modelo econômico, em qualquer país a população acha que as prioridades devem ser a saúde, a educação e a segurança”. E emenda: “em Cuba não é diferente”. Para dizer em seguida que é muito grande em Cuba o contentamento da população cubana em relação a estes três aspectos. A defesa do stalinismo adquire assim a retórica benevolente do senhor colonial. Claro que a criminalidade em Cuba é baixíssima! A violência sem lei de seu Urstaat dá um poder tão absoluto à sua polícia que ela tem poder para aterrorizar até o comportamento de um cantor de rock, como citamos acima. A reportagem assim está louvando o funcionamento da polícia sem os limites legais?

A passividade da reportagem em relação ao controle absoluto da polícia sobre o mundo da vida cubano também é curiosa. Em quinze minutos de conversas com a população em uma rua de Havana, os repórteres foram abordados três vezes por policiais e nas três tiveram que mostrar a autorização do Estado cubano para filmar. Proibidos de filmar na área interna do Porto de Mariel, que está sendo construído com financiamento de capital público do BNDES, os repórteres também foram abordados por vigias do lado de fora do porto, que determinaram o fim das filmagens. A ausência na reportagem de uma explicação e contestação para tal situação, tipicamente totalitária, soa quase como aceitação natural da restrição do direito à liberdade de informação, um dos pilares fundamentais das liberdades civis e única possibilidade de existência do jornalismo. Cuba não precisa de liberdade de informação?

Em suma, o significante mestre da vida política cubana, o totalitarismo fidelista, desapareceu do mapa na cartografia jornalística dos repórteres da Globo News. Inexplicavelmente, a reinserção de Cuba nas relações diplomáticas do Departamento de Estado dos USA parece ter dissolvido a defesa de ideias políticas liberais por parte dos jornalistas da maior empresa de comunicação do Brasil. Uma tal posição também foi justificada na reportagem por supostas oportunidades econômicas que Cuba pode significar para a economia brasileira no futuro. Nisso a reportagem da Globo News se alinha o patrocínio milionário do governo totalitário da Guiné Equatorial à escola de samba Beija-flor. Fato com o qual o Grupo Globo também mostrou-se conivente. Parece que para a mídia oligárquica brasileira as perspectivas de lucro soterram qualquer defesa das liberdades políticas. O totalitarismo oligárquico capitalista da Globo pode, enfim, dar os braços ao totalitarismo stalinfidelista cubano.