por Almir Pereira
Em 23 de maio de 2014 a
presidente Dilma Roussef instituiu a Política Nacional de
Participação Social (PNPS), através do decreto 8.243. Trate-se de
uma lei que organiza a relação entre ministérios e outras
repartições federais com as diversas instâncias de participação
social, como os conselhos permanentes de políticas públicas, as
periódicas conferências nacionais temáticas e as frequentes
audiências públicas, entre outras. À primeira vista seria apenas
uma formalização de mecanismos institucionais já existentes no
Estado brasileiro e um incentivo para que órgãos públicos que
ainda não os adotam passarem a fazê-lo. Foi esta a perspectiva que
membros do governo adotaram para defender a PNPS diante de amplas
reações contrárias ao decreto por parte de juristas,
representantes políticos e profissionais das mídias.
Há nos acontecimentos
políticos atuais uma realidade inegável: o sistema representativo
moderno está mergulhado numa crise secular. Tal crise tem extensão
mundial, mas em cada situação nacional ela aparece de uma forma
particular. No Brasil o domínio dos partidos oligárquicos sobre a
República Democrática é a causa principal do esvaziamento de
representação desta e as jornadas de junho são o sintoma mais
explícito disso. A tentativa de cooptação das massas no junho de
2013 pela presidente Roussef com a proposta de constituinte exclusiva
para a reforma política foi uma declaração do esgotamento político
da Constituição de 1988. A PNPS é mais um ato no roteiro de
captura da energia política liberada pelas multidões de junho, por
parte do Governo.
A representação trágica da política brasileira pelas multidões indignadas e democráticas acendeu a luz amarela no painel de controle do dispositivo oligárquico nacional. A fração política que gira em torno do poder Executivo, capitaneada por Roussef, pretende desacelerar a ação multitudinária e intensificar a remodelação dos aparelhos de Estado produzindo “o povo participativo para além do povo-nação”. Tal movimento já foi classificado pelos analistas políticos como sendo da mesma classe do bolivarianismo, do golpismo e do bolchevismo. A classificação da PNPS junto destes significantes teria apenas um sentido retórico? Terá Roussef dado um passo na remodelação do Estado brasileiro em um sentido anti-democrático?
A PNPS criou um
antagonismo explícito entre o Executivo e o Legislativo. Este reagiu
de forma contundente contra o decreto presidencial 8.243,
argumentando principalmente a usurpação de seus poderes. O
Executivo, no entanto, não mostrou-se interessado em ceder como se
deu no caso da proposta de uma constituinte para a reforma política.
Parece que na proximidade das eleições para Presidente da República
a presidente Roussef quer marcar uma linha divisória entre o
Executivo e o Congresso Nacional em relação à forma de abordar as
multidões de junho. Vale lembrar que em 2013 as multidões se
mostraram mais coesas na repulsa do Legislativo, que era mais
identificado como um reduto oligárquico, do que no repúdio ao poder
Executivo.
O ministro Gilberto
Carvalho, em entrevista ao Jornal O Globo em 16 de junho
(http://oglobo.globo.com/brasil/gilberto-carvalho-dilma-nao-vai-alterar-projeto-sobre-politica-nacional-de-participacao-social-12874781)
apresentou a disposição de confronto do Executivo. Ele disse que o
Governo não pretende recuar do decreto 8.243 tranformando-o em
projeto de lei a ser remetido ao Congresso Nacional. Segundo Carvalho
o Governo “prefere ser derrotado. E aí o Congresso vai ter que
explicar para a sociedade porque derrotou uma proposta em que nada o
ofende. Se o Congresso aceitar, gostaríamos de fazer audiência
pública para discutir a natureza e o amadurecimento da participação
da sociedade.” A argumentação do ministro explicita o quanto o
governo quer diferenciar-se do Congresso quando se trata de abordar
as massas que protestam nas ruas.
Ainda na entrevista
citada acima, o ministro acenou ao Congresso com os mesmos fantasmas
com que as mídias apavoram seus expectadores: os jovens mascarados
vestidos de preto que quebram vidraças durante manifestações. Para
Carvalho “um governo democrático tem que estar aberto para esse
debate, se não vai gerando processos muito mais complexos, como os
black blocs e outras formas que criam enormes problemas para a
sociedade. Sim, daí a nossa inquietude de abrir para a participação
das redes sociais nessas esferas. O lamentável é uma minoria que
argumenta que a atuação da polícia na periferia justifica a
violência nesses atos. Dizem que não agem contra as pessoas, mas
contra os bancos. Mas também acabam destruindo lixeiras e placas de
trânsito.”
Nessa linha de
argumentação a invenção do “povo-participativo” pela
presidente seria uma forma de transformar o niilismo juvenil em uma
potência democrática. O que a fala do ministro Carvalho aponta é
um movimento do Executivo para se apropriar da produção de sentido
acerca do que representam os protestos de rua a partir do junho de
2013. A PNPS é uma “forma branda do bolivarianismo”, que abre
uma fenda entre as massas nas ruas e a população retirando o apoio
desta àquelas e transferindo tal apoio ao poder Executivo através
dos conselhos de participação social. O Governo, através da PNPS,
está reivindicando-se como um tradutor dos anseios das massas.
No último dia 15 de
junho o Jornal Folha de São Paulo publicou uma matéria
(http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/06/1470598-seis-perguntas-sobre-os-conselhos-populares.shtml)
defendendo a posição do Governo e contestando os críticos da PNPS
que teriam classificado a PNPS como 'golpista', 'bolivariano' e até
'bolchevique' sem razões para tanto. Nesta matéria o decreto é
apresentado como um dispositivo burocrático neutro propositor de
procedimentos já existentes e sem nenhuma novidade de caráter
político. Essa neutralidade foi contestada no dia seguinte por um
dos colunistas da revista Veja, que publicou um artigo para explicar
detalhadamente como a matéria do jornal desconsidera os reais
reflexos da PNPS
Este último artigo
considera que a PNPS tem por objetivo minar o sistema representativo
na mesma linha de ação dos governos de Hugo Cháves. Um dos
argumentos levantados a esse respeito é a influência que a base
política e social ligada ao Governo tem sobre vários desses
conselhos, especialmente os da área social, ou seja, nenhum grupo
político terá possibilidades maiores de influenciar tais conselhos
que aqueles que compõem a base do Governo. No mesmo artigo é
apontada também a falta de transparência em que funcionam tais
conselhos e o quanto são mais prestigiados justamente os conselhos
que têm maiores afinidades com o Governo.
No último dia 13
de junho um grupo de juristas e professores universitários divulgou
um manifesto em favor da Política Nacional de Participação
Social. Tal manifesto encerra-se dizendo que “o decreto
[da PNPS] não possui inspiração antidemocrática, pois não
submete as instâncias de participação, os movimentos sociais ou o
cidadão a qualquer forma de controle por parte do Estado Brasileiro;
ao contrário, aprofunda as práticas democráticas e amplia as
possibilidades de fiscalização do Estado pelo povo.” O manifesto
do qual faz parte este trecho já repercutiu e recebeu apoio de
outros grupos organizados que possuem afinidades ideológicas com o
Governo. Também algumas lideranças do PT fazem a defesa do decreto
com a mesma linha de argumentação: “Como se pode falar em
ditadura quando se fala em ampliar o controle da sociedade sobre o
governo?” Interroga o ministro Carvalho na entrevista referida
acima.
Até lideranças de
oposição, mas com alguma afinidade ideológica com o governo, se
deixaram levar pela ilusão de que em essência o decreto da PNPS é
benéfico. Já manifestaram-se defendendo esta linha de pensamento o
presidenciável Eduardo Campos, sua vice, Marina Silva, e o líder do
partido Rede Sustentabilidade, Basileu Margarido. Margarido pontuou:
“Agora isso gera algum desconforto e alguma desconfiança de que
essa seja uma atitude mais eleitoreira do que realmente um
aperfeiçoamento das instituições públicas e da democracia.”
Será que nenhum deles se atentou para o fato de que se trata de uma
busca de capturar o apoio popular às jornadas de junho? Os setores
políticos de oposição, mas sem afinidade ideológica com o
Governo, perceberam e denunciaram este anseio de apropriação, pelo
Governo, do excedente político gerado nas ruas, mas apresentaram
como contraponto a defesa da legitimidade do poder Legislativo. Um
poder oligárquico tem alguma legitimidade para se arrogar defensor
da democracia diante de uma ação oligárquica de outro poder
oligárquico? Parece que a reação democrático-formalista à PNPS
não leva em conta tal questão.
Na superfície do
debate político em torno da PNPS o formalismo democrático turva
nossas vistas para o caráter oligárquico da profunda crise por que
passa a República Democrática, que as massas nas ruas denunciaram
reiteradamente e que interessa às oligarquias, seja do executivo
seja do legislativo, fazer calar. Enquanto os termos do debate
respeitarem as fronteiras do diálogo inter-oligarquias a captura das
energias democráticas das multidões ficará na penumbra. Um passo
para nos livrarmos disso é reconhecermos que nos dias atuais a
linguagem e as formalidades democráticas são a matéria-prima
principal com a qual a Presidente da República, através da PNPS,
está esculpindo a expansão do Urstaat. A fabricação do
“povo-participativo” pela PNPS tem este caráter. É com uma
política de participação social que pretende dissipar a presença
popular nas ruas.