por Almir Pereira
Qual é a cadeia
significante que pilota a política cubana na atualidade? Qual é o
significante mestre que ordena o sistema político de Cuba? Ao
fazermos uma cobertura jornalística sobre a sociedade cubana atual e
sua inserção no mundo, as respostas a tais questões são
desprezíveis? Em Cuba ainda vigora a cultura política totalitária
stalinista no mundo-da-vida, na política e no aparelho de Estado? O
totalitarismo stalinista cubano é filiado à tradição populista
latino-americana e russa (Bandeira, 2015). Fazer uma matéria
jornalística com pretensões abrangentes, mas evitando tocar na
lógica que pilota a política cubana é uma capitulação frente ao
stalinfidelismo.
O significante
totalitarismo stalinista é primordial para entendermos Cuba na
atualidade. Se a produção jornalística tiver pretensão de tratar
da realidade cubana excluindo este significante, tal operação terá
o status de uma foraclusão? Neste caso, a foraclusão significa “a
rejeição de um significante primordial para fora do universo
simbólico do mundo-da-vida do sujeito-população cubana”
(Bandeira, 2014). O sujeito-população cubana vive sob a égide de
um significante primordial que, na abordagem jornalística, é
rejeitado como se fosse algo inexistente no universo simbólico desta
mesma população. A sociedade do espetáculo latino-americana, quase
na sua integralidade, trabalha com a foraclusão do totalitarismo
stalinista!
Foracluindo os
significantes primordiais da política cubana o jornalismo brasileiro
amarra um laço que ata a população brasileira ao inconsciente
político stalinista. Dessa forma desaparecem para o público
brasileiro os “gestos, alucinações, delírios, sugestões,
funções e ritos fáticos”(Bandeira, 2014) de ordem stalinista,
que habitam o cotidiano da população cubana. Assim as diferenças
políticas no campo da vida, entre Cuba e o Brasil, não vão
desaparecendo? Assim a importância das liberdades democráticas
vigentes no Brasil não é dissolvida pelo totalitarismo da sociedade
do espetáculo? Ao retratar Cuba foracluindo o totalitarismo
stalinista, o jornalismo brasileiro revela sua verdadeira face
anti-liberal e anti-libertária. A foraclusão do totalitarismo
stalinista pelo jornalismo brasileiro revela, por um lado, o caráter
de simulacro do liberalismo político midiático e, por outro, o
funcionamento artefactual da lógica totalitária da indústria da
comunicação brasileira.
Em recente entrevista ao jornal espanhol El País,
Pablo Milanés, um dos maiores ídolos da música popular cubana,
apontou para a ignorância da mídia mundial em relação aos campos
de concentração stalinistas (Gulags) que vigoraram em Cuba por
décadas e que chegaram a encarcerar 40.000 pessoas e submetê-las ao
regime de trabalhos forçados. Além dos Gulags cubanos, Milanés
também aponta para os “procedimentos stalinistas que prejudicaram
intelectuais, artistas e músicos” através de coação peloo
regime político sobre o trabalho destes profissionais. Pablo Milanés
ainda continua alinhado com a esquerda latino-americana e é
admirador de governantes como os presidentes Rafael Correia do
Equador, Evo Morales, da Bolívia e Pepe Mujica, do Uruguai. Apesar
de ainda ter uma posição política de esquerda, o cantor cubano
denuncia que a suposta abertura pela qual estaria passando Cuba é
uma ficção. Ele lembra que “sempre disse que essas aparentes
aberturas são simplesmente maquiagem e que é preciso ir a fundo,
caminhar pelas ruas para ver que nada mudou”.
No tocante à
permanência da política cultural stalinista no país, que Milanés
também aponta na entrevista citada, o caso da banda de rock
anarcopunk Porno Para Ricardo é uma evidência de que não houve
abertura nenhuma em Cuba. Gorki Águila, vocalista da banda, foi
preso em 2008 sob a acusação de periculosidade, ou seja, acusado de
ter a intenção de
cometer crimes. A criminalização das intenções é um dispositivo
jurídico tipicamente totalitário e que também foi a base da
argumentação dos USA para a invasão do Iraque em 2003. Rivais em
vários temas, as elites políticas cubana e norte-americana tem
muita afinidade quando se trata de usar dispositivos totalitários
para a manutenção e ampliação de seus poderes. Depois de solto,
Gorki Águila passou a ser vigiado permanentemente “por câmeras,
como se estivesse em um cativeiro público”.
Uma violação do direito básico à privacidade que qualquer
indivíduo deve ter, mas que a cultura política stalinfidelista não
reconhece. É curioso que a maior exposição de tais fatos na mídia
brasileira tenha se dado no programa Música na Mochila, um programa
documental especializado de um canal por assinatura. A dissidência
anarcopunk cubana é desprezada pelos “liberais” do jornalismo
político brasileiro.
Outro exemplo de que a
política stalinista está em pleno vigor em Cuba e que Milanés está
certo ao apontar o caráter de simulacro da suposta abertura cubana é
a denúncia feita pela Comissão de Direitos Humanos de Cuba, no
último dia 22 de fevereiro, um domingo.
Naquele dia foram presos em Cuba mais de 150 ativistas dos direitos
humanos. Estas prisões ocorreram depois da reaproximação
diplomática entre os USA e Cuba. Será que o regime cubano teme que
as passeatas dominicais do grupo Damas de Branco, que luta pela
libertação de presos políticos, ganhe a simpatia da população e
se transforme num movimento de massas anti-totalitário? Seriam estas
prisões um sinal emitido pelo governo cubano para a população, de
que a reaproximação com os USA não significará um milímetro de
deslocamento na direção totalitária da cultura política cubana?
No Brasil o
totalitarismo cubano é um tema tratado pelo jornalismo com
diferentes graus de foraclusão. O jornalista Fernando Gabeira é um
egresso da luta armada da esquerda contra a ditadura militar de 1964,
que renegou esse passado e se converteu num pacífico defensor dos
direitos individuais e das liberdades políticas. No entanto, Gabeira
publicou um artigo em 24/10/2014, no qual distancia o regime político
cubano do totalitarismo stalinista. Para Gabeira, ao contrário da
esquerda comunista européia , “no Brasil, o stalinismo não tem o
mesmo peso. O fio da meada é a relação [da esquerda brasileira]
com a ditadura cubana, a admiração por um regime falido e o
silêncio inquietante sobre seus crimes”.
Se o regime cubano não é stalinista, como Gabeira o classificaria?
Seria um tipo de totalitarismo sui generis? A posição de
Gabeira leva água para o moinho daqueles que querem manter o
“silêncio inquietante” diante da ausência de liberdades em Cuba
argumentando que trata-se de um regime mais brando que o stalinismo.
Gabeira se tornou um intelectual dócil, e cordato, em relação à
ideologia dominante latino-americana bolivarianista?
O conselho dado acima
por Pablo Milanés, de caminharmos pelas ruas de Cuba para ver como
vive sua população, foi seguido por dois jornalistas brasileiros da
GloboNews durante alguns dias do último mês de janeiro. Através de
caminhadas pelas ruas de Havana, abordando seus habitantes, os
jornalistas produziram uma longa reportagem, que foi ao ar no Jornal
das Dez, daquela emissora, nos dias nove, dez e onze de fevereiro de
2015. Essa reportagem teve como principal pretensão apresentar as
condições de vida em Cuba e a opinião dos cubanos sobre uma série
de assuntos.
A exibição da
reportagem sobre Cuba pelo Jornal das Dez começou com uma entrevista
do âncora com os repórteres que estiveram em Havana produzindo a
matéria. O estranhamento já se inicia por aí. Os repórteres
falaram dos vários entraves que o Estado cubano opôs à realização
da reportagem, mas em nenhum momento apontaram como causa disso o
controle total que o regime político de Cuba exerce na produção de
informações sobre aquele país. O espectador que ignora a cultura
totalitária que articula o Estado em Cuba não pode entender através
da reportagem o porquê de tais restrições. A reportagem opera com
a suposição de que todos já conhecem o totalitarismo cubano.
A transposição do
raciocínio acima para a narrativa da reportagem propriamente dita
anula qualquer perspectiva crítica, na medida em que esta buscou nas
ruas, entrevistando as pessoas comuns, a opinião dos cubanos sobre
sua cultura política. Nenhum dos entrevistados criticou a ausência
de liberdade. Cuba jamais conheceu o liberalismo político. Segundo a
reportagem, os cubanos estão satisfeitos com sua vida política
totalitária. O absurdo de uma tal postura é evidente, pois como
pode uma população que vive sob o controle stalin-fidelista, há
seis décadas, não temer afrontá-lo ou mesmo apresentar um
conhecimento mínimo das liberdades elementares, se estas jamais
existiram como cultura política da população cubana? Se os
repórteres fossem entrevistar os críticos cubanos do regime
político de Cuba, que mencionamos acima, certamente não teriam
encontrado apenas o que chamaram de “permanência da chama dos
ideais da revolução na população”. Parece que o reatamento
diplomático dos USA com Cuba deu licença para o jornalismo
oligárquico brasileiro juntar-se ao coro pró-stalinista
bolivarianista da esquerda latino-americana.
Contraditoriamente, a
reportagem mesma fala de um “desejo da população de conhecer
outros "sistemas políticos”. Vivendo sob um controle
totalitário da informação como podem os cubanos fazer uma crítica
comparativa de sua vida política? Confrontando a diferença extrema
entre o senso comum da cultura totalitária com países onde há
liberdade de informação, a reportagem parte para uma generalização
impossível de aceitar: “não importa o sistema político ou o
modelo econômico, em qualquer país a população acha que as
prioridades devem ser a saúde, a educação e a segurança”. E
emenda: “em Cuba não é diferente”. Para dizer em seguida que é
muito grande em Cuba o contentamento da população cubana em relação
a estes três aspectos. A defesa do stalinismo adquire assim a
retórica benevolente do senhor colonial. Claro que a criminalidade
em Cuba é baixíssima! A violência sem lei de seu Urstaat dá um
poder tão absoluto à sua polícia que ela tem poder para
aterrorizar até o comportamento de um cantor de rock, como citamos
acima. A reportagem assim está louvando o funcionamento da polícia
sem os limites legais?
A passividade da reportagem em relação ao controle absoluto da
polícia sobre o mundo da vida cubano também é curiosa. Em quinze minutos de conversas
com a população em uma rua de Havana, os repórteres foram
abordados três vezes por policiais e nas três tiveram que mostrar a
autorização do Estado cubano para filmar. Proibidos de filmar na
área interna do Porto de Mariel, que está sendo construído com
financiamento de capital público do BNDES, os repórteres também
foram abordados por vigias do lado de fora do porto, que determinaram
o fim das filmagens. A ausência na reportagem de uma explicação e
contestação para tal situação, tipicamente totalitária, soa
quase como aceitação natural da restrição do direito à liberdade
de informação, um dos pilares fundamentais das liberdades civis e
única possibilidade de existência do jornalismo. Cuba não precisa
de liberdade de informação?
Em suma, o significante
mestre da vida política cubana, o totalitarismo fidelista,
desapareceu do mapa na cartografia jornalística dos repórteres da
Globo News. Inexplicavelmente, a reinserção de Cuba nas relações
diplomáticas do Departamento de Estado dos USA parece ter dissolvido
a defesa de ideias políticas liberais por parte dos jornalistas da
maior empresa de comunicação do Brasil. Uma tal posição também
foi justificada na reportagem por supostas oportunidades econômicas
que Cuba pode significar para a economia brasileira no futuro. Nisso
a reportagem da Globo News se alinha o patrocínio milionário do
governo totalitário da Guiné Equatorial à escola de samba
Beija-flor. Fato com o qual o Grupo Globo também mostrou-se
conivente. Parece que para a mídia oligárquica brasileira as
perspectivas de lucro soterram qualquer defesa das liberdades
políticas. O totalitarismo oligárquico capitalista da Globo pode,
enfim, dar os braços ao totalitarismo stalinfidelista cubano.