Uma parte considerável dos textos sobre a política atual que circulam como literatura especializada, jornalismo ou comentários em redes sociais é de uma repetição profundamente entediante. Seja na reprodução dos cânones acadêmicos ou nos comentários simplórios do senso comum, é imensa a proporção de explicações estéreis no sentido de jogar luz sobre o que está acontecendo. As pessoas que já intuíram que a atualidade política representa mudanças profundas e inéditas sentem tais explicações como uma força de repressão intelectual à sua intuição.
Quem
acompanha o fluxo dos significantes políticos nas redes sociais tem
notado o quanto a internet se tornou uma Babel de idéias políticas,
onde significantes teoricamente opostos ou excludentes passaram a ser
misturados. Tal confusão revela muito mais do que ignorância
teórica por parte dos internautas, revela que na superfície das
práticas políticas a formalidade das idéias consagradas não tem
mais eficácia simbólica. O imaginário padrão tem sido cada vez menos efetivo
na oferta de significantes capazes de simbolizar o real fugidio da
política. Também o simbólico tem se mostrado fugidio em sua relação com o imaginário político.
Daí as conversas sobre política nas redes sociais serem cacofônicas
e muito raivosas.
O leitor que busca contribuições efetivas do pensamento político atual
tornou-se um garimpeiro em jazidas escassas. Sua paciência e atenção
tornaram-se os principais parâmetros para encontrar algo de valor
numa imensidão de explicações repetitivas e convencionais, que se
apresentam como sendo argumentos revolucionários capazes de dar
conta das reviravoltas políticas que nos deixam perplexos a cada
dia. A predominância dos profetas de fatos passados dificulta muito
o reconhecimento dos verdadeiros poetas do presente.
Os
interessados na reflexão fértil da política de hoje em dia devem ler
Produção do contemporâneo, livro de José Paulo Bandeira,
lançado recentemente pelo selo “Publique-se”, da Livraria
Saraiva. Trata-se de um livro de ensaios, sendo que o maior deles
ocupa quase a metade do livro e apresenta uma visão panorâmica dos
fenômenos e objetos que caracterizam a política na atualidade. Os
outros ensaios se dedicam a temas mais específicos, mas não sem
localizá-los no encadeamento lógico que produz a contemporaneidade
como uma totalidade.
Produção
do contemporâneo mostra como estão colocados na política
brasileira vários fenômenos atuais que não se restringem ao
Brasil. Fenômenos políticos universais que formam um encadeamento
mundial, mas que em cada país, região ou continente, particularizam-se nos traços específicos de cada contexto. Por isso
também é um livro sobre a especificidade da cultura política
brasileira e sobre como esta tem redefinido o sentido dos
significantes políticos da cadeia política mundial. Redefinição
feita a partir das práticas políticas seculares no Brasil.
Também
podemos dizer que se trata de uma obra sem restrições intelectuais,
pois trafega por uma enorme extensão de campos teóricos produtores
de conhecimento acerca da política. O livro vai da filosofia
política clássica de Aristóteles até a psicanálise Lacaniana,
passando pelos mestres das ciências sociais brasileiras. Um exemplo
relevante da fertilidade desse método é o uso estratégico do
Urstaat, originário do
pensamento de Nietzsche, autor que geralmente não é associado à
reflexão da política.
O Urstaat é uma regressão ao Estado originário que tem se generalizado nas diversas realidades nacionais da atualidade. Regressão diante da qual o pensamento especializado tem repetido uma terminologia moderna impotente, como mostra a proliferação de termos como Estado de exceção e ditadura. O despertar do Urstaat tem se tornado uma praxe, por isso não pode ser classificado como “exceção”. Como esse despertar não dissolve formalmente as instituições liberais, a classificação desse fenômeno como sendo a implantação de uma ditadura não demonstra consistência. O Urstaat simboliza com eficácia uma lacuna do pensamento político e joga luz sobre uma das maiores sombras políticas do contemporâneo.
O Urstaat é uma regressão ao Estado originário que tem se generalizado nas diversas realidades nacionais da atualidade. Regressão diante da qual o pensamento especializado tem repetido uma terminologia moderna impotente, como mostra a proliferação de termos como Estado de exceção e ditadura. O despertar do Urstaat tem se tornado uma praxe, por isso não pode ser classificado como “exceção”. Como esse despertar não dissolve formalmente as instituições liberais, a classificação desse fenômeno como sendo a implantação de uma ditadura não demonstra consistência. O Urstaat simboliza com eficácia uma lacuna do pensamento político e joga luz sobre uma das maiores sombras políticas do contemporâneo.
A
política na atualidade caracteriza-se pelo poder titânico das
operações de amoldamento da vida segundo a perversão dominante e
pela reação das multidões rebeldes que não aceitam mais as
crescentes privações a que são submetidas por tais operações.
Esta é a principal tese do livro, que mostra o quanto vivemos numa
era de ultrapassagem de paradigmas políticos seculares, que está
inviabilizando o pensamento convencional. Por isso, trata-se de um livro-convite à ruptura com este tipo de pensamento político. Não
porque proponha algum vanguardismo, mas porque simboliza esse processo
novo que está remodelando as formas políticas conhecidas e, assim, dissolvendo a eficácia do pensamento político
vigente.
Um dos
problemas contemporâneos a ser resolvido é o problema do governo
possível. A tradição revolucionária moderna nos garantiu que
encontraríamos a forma simbólica do real, e o que adveio disso foi
a tragédia stalinista, forma acaba da negação do incosciente
político. Agora sabemos que qualquer tentativa de abolir o
inconsciente político nos guia em direção ao pior. Uma abordagem
fértil do governo possível é elaborada em Produção do
contemporâneo. “Como objeto
socialmente valorizado, o governo possível seria o efeito da
sublimação das pulsões do inconsciente político que levam o luto
e a desolação para a política”. Para
tanto a política deve ser operada como lógica do significante
amizade. A amizade é um significante do campo da ética. A amizade
imperfeita é a ética da cidade, “distinta da amizade perfeita
entre muitas pessoas”(p.54), esta oriunda do imaginário
aristotélico. A amizade na multidão, inclusive na multidão
virtual, abre para a possibilidade de reinvenção do espaço público
no século XXI.