sábado, 29 de março de 2014

Sade e a revolução

por Almir Pereira

*Este texto foi apresentado ao XXXVI Encontro da Escola Brasileira de Psicanálise Movimento Freudiano (EBPMF), em 15/03/2014, sob o título: Sade, a psicanálise e a política, título este que figurou aqui nos primeiros dias de publicação.

Uma das lembranças mais primárias dos estudantes acerca da história universal é a linha do tempo que apresenta pontos de ruptura separando os longos períodos históricos. A Revolução Francesa é, em tal linha, o ponto de ruptura que separa a Idade Moderna da Idade Contemporânea. As historiografias atuais têm verdadeiro horror a tal mecanicismo, mas este ainda povoa a memória daqueles que foram escolarizados quando a história mecânica ainda era a regra. Algo da Revolução Francesa ainda nos é contemporâneo: o republicanismo, ideologia que afirma a liberdade e igualdade entre os homens.

Em seu livro A filosofia no “boudoir”, Sade incluiu o panfleto intitulado “Franceses, mais um esforço se quereis ser republicanos...”. Nele o marquês dá sua versão do autêntico republicanismo, a concretização do mesmo deveria motivar os franceses a ir além do republicanismo terrorista que foi o ápice da Revolução e período no qual Robespierre foi o senhor da França. O panfleto é dividido em duas partes: A Religião e Os Costumes. Na primeira parte Sade afirma a necessidade do estabelecimento oficial do ateísmo para assegurar a autenticidade republicana. Na segunda parte são apresentadas as propostas de reforma dos costumes para torná-los adequados a uma república, já que Sade considera os costumes vigentes durante a Revolução como sendo frutos e garantia de continuidade do despotismo. Tanto o teísmo dos revolucionários, que queriam instituir uma religião civil, quanto a moralidade, ainda em vigor, deveriam, para Sade, ser substituídos pelas novas regras que ele propõe ao longo do texto.

Pierre Klossowski dedicou um capítulo de seu estudo sobre Sade à relação deste com a Revolução. Salta aos olhos a leitura sociológica que estrutura tal estudo. Sade como um produto da decadência da velha ordem social que quer impor tal decadência como a forma autêntica de estabelecer a nova ordem. Klossowski faz assim a defesa da ordem republicana, nascida da Revolução Francesa, contra a necessidade libertina sadeana de radicalizá-la.

Por conta dessa confrontação entre Sade e a Revolução, fui ao dicionário de política buscar alguma luz. Me surpreendi com o fato de que, em sua origem renascentista, a palavra revolução se referia “ao lento, regular e cíclico movimento das estrelas” (Bobbio: 1123), o que parece se opor ao sentido que lhe atribui o senso comum atual, o de mudança radical daquilo que é normal e regular. Essa palavra adquiriu caráter político, segundo o mesmo dicionário, no século XVII, mas mantendo uma correlação com o sentido acima, o de “retorno a um estado antecedente de coisas, a uma ordem preestabelecida que foi perturbada” (Bobbio: 1123), sentido que ainda era válido no período inicial da Revolução Francesa.

Foi durante a última década do século XVIII que a palavra revolução passou a significar a “fé na possibilidade da criação de uma ordem nova” (Bobbio: 1123), e isso não foi à toa, já que os iluministas, principal influência intelectual dos acontecimentos políticos daquela década na França, já operavam com este sentido implícito em suas formulações teóricas, postulando “a criação de novos instrumentos de liberdade” (Bobbio: 1123). Além de assegurar a liberdade, para os iluministas a revolução também deveria trazer a felicidade ao povo.

Ser livre, para Sade, é fazer o que a lei proíbe, ou seja, poder cometer crimes. Aliás, crime, para Sade, é coisa de uma ordem despótica, numa república autêntica a lei deve ser permissiva o suficiente para tolerar coisas como o assassinato, o incesto, a pedofilia, o estupro, a calúnia, o roubo etc. Só dá para falar que ainda há lei na imaginação sadeana porque nela há a proposição de várias obrigações: comunidade de homens e de mulheres, comunidade de crianças, fim da família, comunidade da riqueza, proibição da pena de morte etc.

O recalcamento originário constitui o inconsciente enquanto um processo metafórico. Nele o significante do desejo da mãe, ou seja, do Outro, é recalcado em função de um novo significante: o Nome-do-Pai. Assim, em relação à barra de significação, o significante do desejo da mãe fica embaixo desta barra e o significante Nome-do-Pai em cima. S2 sobre S1. No republicanismo o significante do desejo da mãe é a igualdade/liberdade, que aparece embaixo da barra de significação, em cima da qual aparece o significante Estado, ente de privação/controle por essência. Ao denunciar o republicanismo da Revolução, Sade mostra como este é contraditório, pois tal republicanismo só fez continuar por outros meios o gozo do Um sobre os demais. A máxima a que se refere esta continuidade seria: “posso gozar de seu corpo porque represento a 'Vontade Geral', me diz qualquer Estado republicano”. 

O republicanismo virtuoso da fase do Terror só fez ocultar a posição de senhor daqueles que compunham o Comitê de Salvação Pública, principalmente Robespierre. A escrita sadeana dirige-se, portanto, à fase virtuosa do republicanismo moderno. A vontade geral ficou condicionada a uma relação unívoca, que não garante à vontade que seja de fato geral. A vontade só se pode generalizar quando a sua aplicação é mútua. Para garantir o acesso mútuo à vontade Sade estipula a máxima: “posso gozar de teu corpo, pode dizer-me qualquer um”. Talvez possamos chamar isto de universalismo polimorfo ou polimorfia universalizada.

Para Sade o republicanismo virtuoso, apesar de trágico, é ainda um simulacro de republicanismo, já que funciona pela soberania do Um sobre os demais. O republicanismo autêntico sadeano significa dar um passo adiante na direção da soberania mútua entre todos, considerando que a única via de tráfego, unívoco ou mútuo, é a via do gozo. Sade considera o regime político unicamente como regime de gozo.

A Revolução propunha a felicidade, mas seus excessos não comprovaram isso. Já o republicanismo sadeano, em sua exortação dos excessos libertinos universalizados parece-nos menos triste que a carnificina virtuosa de Robespierre e seus confrades. Ao propor a universalização do acesso ao gozo Sade anula a possibilidade do mais-de-gozar? O republicanismo sadeano seria a única forma de superar o mais-de-gozar, já que nele não há limites ao gozo, logo todos gozam de todos e a permissividade legal sadeana, mais as obrigações comunitaristas postuladas pelo marquês, anulam toda concentração de possibilidades de gozo, inclusive as advindas da acumulação de mais-valia. A crítica de Sade ao republicanismo é uma crítica à economia de gozo da Revolução Francesa.

Na ordem atual os cidadãos comuns são as vítimas sadeanas voluntárias que se oferecem para o gozo dos governantes, seja como contribuintes, seja como ressentidos expectadores, choramingando diuturnamente contra a corrupção. Sade é aquele que revela o inconsciente político do republicanismo da Revolução. No republicanismo ideal proposto por Sade não há contradição, assim como no inconsciente. Sade também é um denunciador da servidão voluntária dos cidadãos , que o republicanismo de 89 fez funcionar.

O terrorista leninista, Slavoj Zizek, acha que o republicanismo atual é como café descafeinado, já que hoje a fase do Terror robespierreano parece-nos ter sido um desvio de intolerância e revanchismo, excessivo e sem propósito, apesar de não nos ser de todo repugnante a ideia de levar grande parte dos políticos brasileiros à guilhotina. Hipótese esta que se dissolve na reiteração cínica permanente da necessidade de se respeitar o Estado de direito. Numa situação onde o discurso republicano é articulado cinicamente, a interpelação sadeana parece não fazer sentido, pois pede “um esforço a mais” onde o sacrifício político utópico é mais estranho que um ser extraterrestre. Zizek é do tipo que ainda prescreve coisas como um “terror concreto' [algo como] a imposição de uma nova ordem sobre a vida cotidiana, item no qual, em última instância, [segundo ele] falharam tanto os jacobinos quanto a revolução soviética e a chinesa” (Zizek: 41).

Sade, no entanto, nos deixou o esclarecimento de onde nos levaria o idealismo terrorista da Revolução. O lado normalizante da modernidade foi muito bem explicitado por ele, que via na normalização republicanista o germe de um empobrecimento cultural, que foi posteriormente assinalado pela Escola de Frankfurt, por exemplo. Para Sade a navalha igualitarista da Revolução em sua ânsia de eliminar as diferenças produziria um quadro estético estéril no qual predominariam “peças fracas impostas pela força, romances insípidos, máquinas que idiotizam, cretinice e conformismo em massa, autores castrados de nascença, promoção com poses de avestruzes. Que vergonha, que tristeza, que ódio ao pensamento, que repressão!(...) O fanatismo os reúne [emigrados e revolucionários] na trindade eterna da burrice, da ignorância e do preconceito” (Sollers: 83).

Sade alinha o republicanismo autêntico com a generalização do crime porque entende os ideais republicanistas como uma forma de infantilismo político maquínico, que no seu afã de instaurar o reino da felicidade equivale igualistarismo e libertarismo a uma operação eliminadora do real das diferenças humanas. A Revolução acreditava piamente no republicanismo como um real possível e em sua paixão pelo real soltou à rua o demônio da equivalência absoluta dos humanos. Sade não deixa de referir esse encadeamento ao gozo. Na sua missiva mais famosa ele resume essa referência nos seguintes termos: “os horrores e os crimes acontecem em todas as épocas, e bem sabeis que meus romances estão incrementados deles para que eu possa revelar, pela primeira vez na história, sua nervura especial (grifo do autor). Sem mim, não tenho receio de dizer, os homens continuariam a se agitar em seu lodaçal de paixões e daí tirar prazer, sem se dar conta disso” (Sollers: 89-90).

Apesar de ateu e pregador do ateísmo, há fortes indícios de que Sade teria ido para o céu, se o céu existisse. Se houvesse deus, o deus dos cristãos, por exemplo, este teria perdoado os pecados do marquês em face da herança literária deixada por ele à humanidade, fruto de coragem e perspicácia raras entre os humanos. O principal de perspicácia na obra de Sade é aquilo que ela diz sobre “aquilo sobre o que não queremos saber”. Sade mostra a indivisibilidade entre crime e lei, que seus contemporâneos, marcadamente Kant, se esforçavam para negar com os artifícios retóricos mais sofisticados. 

O caminho sadeano para desatar o sujeito da lei é a disponibilização universal do crime, alguma coisa como um comunismo criminal.
Lacan interpela o republicanismo sadeano através do significante desejo. Para Lacan tal comunismo criminal é algo que resvala do desejo, convertendo a interdição em permissão. Sabemos através da obra freudiana que se não há lei “nada é permitido”. O laço social criminoso proposto por Sade continua a sancionar o supereu, portanto, a interditar o desejo por outros meios. Os meios mudam, mas os fins se conservam. Podemos falar aqui em imperativo superegóico sadeano. Nas palavras de Lacan: “A apologia do crime impele Sade apenas ao reconhecimento indireto da Lei. O Ser Supremo é restaurado no Malefício” (Lacan. 1998: 801).

Qual é a alternativa política da psicanálise ao republicanismo sadeano? Freud disse que governar é impossível. Freud é um niilista em matéria de política? Sabemos o quanto Freud foi ingênuo na avaliação política do Nazismo e o quanto isso o colocou em risco de morte junto com sua família. Freud parece que tinha um inconsciente político bovarista. Lacan também manteve-se distante da política, embora a reação deste diante do assédio nazista sobre sua mulher e sua sogra parece ter revelado um inconsciente político diferente do personagem biográfico Freud. A famosa frase lacaniana sobre a revolução também parece relevante: “a revolução sou eu!”. É o que ele parece sinalizar com sua interpelação ao texto “Franceses, um passo a mais se quereis ser republicanos”, em relação ao qual postula: “De um verdadeiro tratado sobre o desejo, portanto, pouco há aqui, ou mesmo nada” (Lacan. 1998: 802).

Para Lacan o fracasso lógico do panfleto sadeano supracitado se refere à sua crença no retorno ao estado de natureza como solução do imbróglio a que inscrição da lei nos condenou. Contra o terror revolucionário Sade nos convida à sua companhia prometendo-nos “que a natureza, magicamente, como mulher que é, nos fará cada vez mais concessões”(Lacan. 1998: 802). Para Lacan só pode haver um tipo de revolução, se é que se pode usar tal termo para designar algo que não pára de não se inscrever, já que a revolução lacaniana é da ordem de um bem-dizer do sintoma. Consequentemente, “a fórmula lacaniana do sujeito – como posição subjetiva articulada pela lógica significante – é a clareira que oferece um abrigo contra a soberania da natureza. Ela fornece o terreno para a discussão contemporânea do republicanismo.” (Silveira: 52).

A crítica lacaniana da política se pode fazer a partir da relação desta com o desejo. Alain Badiou considera o “pensamento lacaniano totalmente apolítico em seu próprio exercício, [mas Badiou pensa que Lacan] propõe ao pensamento uma espécie de matriz política” (Badiou & Roudinesco: 35). Segundo Badiou, há “uma continuidade entre o pensamento de Lacan e a atitude de tipo revolucionário, que reabre uma disponibilidade coletiva [que atualmente está] mergulhada na repetição ou barrada pela repressão estatal” (Badiou & Roudinesco: 35). Lacan se autodenominou o Lênin da psicanálise, o que se justifica por sua retirada da psicanálise do campo da cura médica e por sua crítica às promessas de felicidade do marxismo. Assim como Lênin, ele privilegia o potencial produtivo e inadaptável do desejo.

Para Roudinesco a psicanálise com Lacan torna-se “um vetor de emancipação, mesmo que se apresente sob formas explicitamente apolíticas” (Badiou & Roudinesco: 36). Essa psicanalista francesa pensa também que a defesa da inadaptabilidade do sujeito humano por Lacan foi um dos elementos que desencadeou o maio de 68 francês. Emancipação é um significante da mesma cadeia do significante revolução. Emancipação do capitalismo é como a esquerda chama a sua revolução. Se o sujeito está para sempre condenado à sua barra, à castração, a emancipação deste se pode dar em que termos? Parece-nos que a mais importante emancipação advinda da psicanálise é a emancipação da emancipação, ou seja, uma emancipação que equivale à pura e simples recusa da adaptação, já que o mundo emancipado da conotação “de esquerda” para essa palavra ainda parece acreditar na construção de um mundo ao qual o humano se possa adaptar plenamente.

A crítica lacaniana da emancipação tem como papel principal a rejeição de toda identificação, a busca por fórmulas novas de poder só engendram poderes piores que os atuais. O papel da luta política é ela mesma, não o alcance de algum ideal que a suprima como desnecessária. Luta de classes sim, mas sem revolução, ou uma revolução que seja a própria luta e não algum giro que se complete. Buscar com a luta a instauração de um processo permanente de saturação do poder pela insubordinação, que leve à supressão do medo da punição policial, social, política etc, generalizando uma resposta bartlebiana uníssona e infinita diante de qualquer proposição de submissão: “eu preferiria de não.” Lacan nos lembra como o marxismo foi um fracasso a este respeito e só fez reposicionar o discurso do mestre em outros termos. Logo o marxismo “que instaurou sua articulação sobre a função da luta, da luta de classes” (Lacan. 1992: 29).

O que a crítica lacaniana da emancipação denuncia principalmente é o esquecimento da esquerda de que “sempre há uma brecha ontológica, uma falha ontológica insuperável, incurável, entre o real e a realidade” (Alemán: 2). No entanto, é imensa a facilidade com que os maliciosos transformam isso em defesa do conformismo político. Por outro lado, fazer propaganda revolucionária articulada em torno da falta parece uma contradição em termos. A ideia de revolução emancipadora não causou tanto furor à toa, isso aconteceu porque é uma ideia extremamente sedutora. A crítica de Lacan parece uma arma também para se lutar contra a sedução política e contra a política da sedução.

Seguindo as pistas de Lacan, Alain Badiou retirou o significante comunismo do campo da utopia. Para Badiou o comunismo “é o verdadeiro nome do real como impossível” (Badiou & Roudinesco: 48). Até agora todos os que se envolveram na luta política em defesa de uma posição emancipadora o fizeram em nome de um real impossível. O que Badiou fez foi “dar nome aos bois”, num esforço de pontuar, psicaliticamente falando, no discurso emancipacionista uma formação do inconsciente político que insiste em obturar ideologicamente a falta constitutiva dos que habitam a linguagem. Resta saber quantos de nós ainda estão dispostos a se meter na defesa de algo da ordem de um real impossível, seja ele o comunismo, a democracia ou até mesmo o Estado de direito, migalha de reconhecimento este, que anda escasseando mundo afora.

A psicanálise, no entanto, mantém-se fiel à máxima subversiva contida na paráfrase do famoso ditado popular: “manda quem pode, desobedece quem tem juízo!”


Bibliografia


BADIOU, Alain & Roudinesco, Élizabeth. Jacques Lacan, passado presente. Rio de Janeiro: DIFEL, 2012.

BOBBIO, Norberto & outros. Dicionário de política. Brasília: Editora UnB, 1998.


LACAN, Jacques. O seminário, livro 17. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.

____________ Escritos: Kant com Sade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

KLOSSOWSKI, Pierre. Sade meu próximo. São Paulo: Brasiliense, 1985.


SADE, Marquês de. A filosofia na alcova. São Paulo: Iluminuras, 2000.


SOLLERS, Philippe. Sade contra o Ser Supremo. São Paulo: Estação Liberdade, 2001.

ZIZEK, Slavoj. Robespierre virtude e terror. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2008.

SILVEIRA, J. P. Bandeira da. Política brasileira em extensão: para além da sociedade civil. Rio de Janeiro: edição do autor, 2000.


Outros

ALEMÁN, Jorge. Operação esquerda lacaniana. São Leopoldo: IHU, 20/02/2011, http://www.ihu.unisinos.br/noticias/40768-operacao-esquerda-lacaniana






















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